SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um anjo versátil se sobrepõe ao céu dividido entre o azul claro e o escuro. Os cabelos loiros, rosto negro e corpo claro sugerem um ser híbrido e questionam sua existência. Asas acinzentadas encontram um chão de tons terrosos, sobre o qual florescem pequenos ramos verdes. No ar, um logo da empresa Nike, deslocado da composição como se não a pertencesse.
Em sua primeira individual na Gentil Carioca de São Paulo, O Bastardo imagina uma utopia onde a negritude divide o quadro com iconografias associadas a uma elite histórica. Esses pontos de ruptura são a matéria de “My Black Utopia”.
“Essa realidade paralela só existe porque, na nossa, optamos por não incluí-la. Ela surge do mesmo perigo em todos os lugares, onde a arte clássica ignora outras formas de se fazer arte. Ela sempre deriva de algo que foi apropriado, roubado e utilizado para o mérito de outros nomes e figuras brancas europeias”, diz o artista.
Para além da figura angelical em “The Rising Angel”, esse universo paralelo busca referências culturais -tiradas especialmente do mundo da música- e incorpora outros símbolos sacros. Segundo O Bastardo, a ideia vai além da releitura dessas bases visuais e o objetivo é ocupar espaços e papéis que antes lhe eram restritos.
É o caso de uma das marcas mais ricas do mundo, das pinturas impressas no teto da Capela Sistina e até Jesus Cristo, eleito negro em uma obra que utiliza um Kendrick Lamar saído da capa de “Mr. Morale & The Big Steppers”.
“Quando me coloco ao lado de Kanye [West] em ‘O Nascimento de O Bastardo [by Kanye]’, não estou relendo Michelangelo. É uma questão sobre esse cenário e tudo que o envolve, que transformo em um ato político de inclusão de símbolos”, afirma o pintor. Ele aponta o imaginário popular como crucial para a discussão de seus trabalhos.
“O imaginário popular só é subestimado quando as pessoas estão sendo usadas pra lá e pra cá. No Brasil, existe a cultura do jovem aprendiz. Se a pessoa já começa em um estado de sobrevivência e vive a vida inteira nessa corda bamba, quando será incentivada a disputar espaços além do que é educada a ocupar?”
Ao subverter Narciso -jovem que se apaixona por si mesmo na mitologia grega- em um dos seus “Sem título”, O Bastardo valoriza outros tipos de beleza. Os contornos de uma poça d’água se confundem com as pinceladas de uma noite estrelada e convidam um homem negro a buscar seu reflexo. Em sua cabeça, um destaque em vermelho vibrante: um boné da marca iFood.
Essas cores destoantes da unidade cromática criam focos de tensão. Em outras ocasiões, a provocação surge de elementos incompletos. São silhuetas, desenhos não preenchidos e ausências na imagem que desafiam os limites dessa representação.
“A tela ‘Narciso’, de Caravaggio, não se apresenta mais a partir da imagem de um suposto príncipe branco de cabelos claros, mas na pele de um homem negro com um boné do iFood cobrindo-lhe os olhos”, diz a antropóloga Lilia Schwarcz. Autora do texto crítico que acompanha a mostra, ela reforça o afinco de O Bastardo em revisar padrões impostos pela história da arte.
“Ele tem uma opção muito clara em sua obra por trazer esses corpos que nada têm de submissos. São corpos rebeldes e que praticam a insurreição. Assim se tornam utópicos”, diz ela à reportagem.
Ainda que denunciem retrocessos, os quadros não materializam uma submissão pressuposta, mas superam algumas condições históricas ao celebrar os sujeitos dessa realidade alternativa.
Exemplo disso é “Kind of Blue”, que celebra o músico Miles Davis e seu icônico álbum de 1959. As pinceladas fortes que desenham o rosto do trompetista se unem ao verde claro, pulsante, e reafirmam a centralidade de Davis e seu legado.
Algo semelhante acontece em “As Bailarinas”, série de diferentes obras de O Bastardo. Mesmo que não parta de um personagem específico, o conjunto humaniza figuras que aprenderam a se distanciar dos grandes palcos.
“Quantas bailarinas negras você viu em um espetáculo de balé? E em quantos deles elas eram protagonistas? Não estamos avançando contra preconceitos mesmo em uma área que pertence às expressões artísticas. Nós aceitamos o balé como um espaço que permite o racismo. As minhas bailarinas só permanecem sem rosto porque a gente ainda vive esse aprisionamento”, afirma ele.
Se esse grupo de pinturas vem de uma obsessão pessoal, o pintor reconhece outras origens autobiográficas em seu trabalho. Criado por mãe solo no município de Mesquita, na periferia do Rio de Janeiro, O Bastardo esteve próximo ao catolicismo durante o crescimento, bastante motivado pela avó materna.
Mais tarde, com o estudo das artes sacras e da estética clássica, passou a questionar a associação entre a fé e a manifestação artística. Em “Mirim”, ele compensa essa hegemonia ao pintar um espírito umbandista, normalmente retratado enquanto criança.
A tanga vermelha e o par de chifres pontiagudos transgridem a limpidez da simbologia cristã, emoldurando um ser complexo, dividido entre o bem e o mal, entre a sabedoria e a travessura, representante da dualidade humana de acordo com a sua religião de origem. São contrastes enraizados na essência da exposição.
“Eu penso que a arte contemporânea não tem que ter qualquer obrigação a não ser impactar. Você pode achar nojento, pode achar triste, pode achar forte, pode achar lindo, mas a arte contemporânea está além da nossa compreensão. Ela não deve ser condicionada a ter função, moral, certo ou errado”, diz O Bastardo.
MY BLACK UTOPIA
Quando De ter. à sex., das 10h às 19h; Sáb., das 11h às 17h. Até 18/01
Onde A Gentil Carioca – Travessa Dona Paula, 108, São Paulo
Preço Grátis
Classificação Não indicada
Autoria O Bastardo
DAVI GALANTIER KRASILCHIK / Folhapress