‘O futuro será pior’, diz Bertrand Bonello, cineasta do pessimista ‘A Besta’

VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Quando estreou no Festival de Veneza, em setembro, “A Besta” foi recebido com aplausos, mas sobretudo interrogações. Afinal, o longa do francês Bertrand Bonello são duas horas e meia de uma trama elusiva, com idas e vindas temporais aparentemente sem conexão, a não ser alguns elementos cênicos e dois personagens que reaparecem em uma espécie de variação sobre eles mesmos. Um roteiro tão enigmático quanto fascinante.

Uma das atrações da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o filme parte do livro “A Fera na Selva”, de Henry James, mas logo o espectador percebe que se trata de um roteiro autônomo em que Bonello traça comentários sobre o passado, o presente e o futuro.

O filme é dividido em três épocas: 1910, 2014 e 2044. No passado, nos arredores de Paris, vemos uma pianista que se envolve com um rapaz, mas que pressente que algo terrível vai acontecer. Em 2014, em Los Angeles, uma aspirante a atriz é ameaçada por um incel. No futuro, comandado pela inteligência artificial, uma jovem desiludida encontra um rapaz também sem perspectivas quando ambos decidem se submeter a um tratamento para se livrar das emoções.

Os três períodos se entrecruzam de maneira obscura, mas algo fica cristalino para o espectador: Bonello não tem uma visão das mais otimistas sobre o futuro da humanidade.

“Sou de uma geração em que, na infância, me diziam que o mundo seria melhor no futuro. Hoje, digo a minha filha de 20 anos que o futuro será pior”, disse o cineasta à Folha de S.Paulo, ao lançar o filme em Veneza. “Não houve uma luz desde que ela nasceu: surgiu apenas o desemprego, o terrorismo, as ideias extremas, os problemas ecológicos. Minha geração cresceu e teve uma grande decepção. Para ela, não. Isso é a vida tal como ela sempre conheceu.”

Bonello tem um bom olho para perceber assuntos que logo entrarão em pauta. Seu notável “L’Apollonide: Os Amores da Casa de Tolerância” já discutia feminismo e sororidade em 2011, e o roteiro do cultuado “Nocturama”, de 2016, sobre atentados e pensamento radical, já estava pronto havia seis anos quando ocorreram os ataques terroristas de Paris de 2015.

O projeto de “A Besta” surgiu muito antes de a inteligência artificial se tornar assunto da moda –e tão presente nas nossas vidas. No filme, a IA toma as rédeas do planeta depois que a humanidade é quase dizimada em 2025.

“A inteligência artificial é uma ferramenta. Ora: com um martelo, podemos pregar uma pintura na parede, mas também podemos assassinar uma pessoa, então a questão é o que fazer com essa ferramenta”, compara.

“Em geral, nós comandamos nossas ferramentas, mas com a IA, tenho a impressão de que é ela que agora nos domina, se tornando cada vez mais poderosa e incontrolável. Há um grande perigo, e decisões precisam ser tomadas –morais, éticas e políticas. Mas precisam ser decisões em nível mundial.”

Bonello diz que o narcisismo é o “mal do século”, sobretudo o revelado pelas pessoas nas redes sociais. “O mundo de hoje é feito para nos impedir de refletir. A reflexão é perigosa e exige algum tempo, mas estamos cada vez mais submetidos a informações e imagens, então nunca temos tempo para nada.”

Sua visão sobre o passado, porém, é menos impiedosa. Nos trechos de 1910 de “A Besta”, os personagens são mais cultos, interessantes. E o mundo parece mais gracioso. Mas o cineasta não se considera um saudosista.

“Não gosto da nostalgia, porque ela acaba nos levando ao reacionarismo. O mundo muda e faz as pessoas mudarem também. Tenho a impressão de que devemos proteger o passado, mas, ao mesmo tempo, ir acolhendo o futuro. Se focamos só no futuro, perdemos o elo com a civilização”, diz.

“A Besta” traz algo em comum com a extravagância cinematográfica anterior de Bonello –o experimental “Coma”, de 2022. Como ali, há uma atmosfera e um onirismo que remetem ao universo de David Lynch. “Mas é um cineasta que me influencia apenas inconscientemente. Não é um desejo da minha parte”, explica-se o diretor.

Além dos dois protagonistas, os três tempos do filme também trazem uma presença em comum –e que também aparecia bastante em “Coma”: bonecas. Surgem em contextos e formas diferentes, mas estão sempre lá, usadas de forma expressiva e habilidosa. “Acho as bonecas algo muito cinematográfico. São um objeto da infância, mas que, por vezes, são aterrorizantes”, diz.

E é imitando o rosto neutro de uma delas que Léa Seydoux tem uma das melhores cenas do filme. Se o papel masculino seria inicialmente de Gaspard Ulliel –que morreu em um acidente de esqui antes das filmagens, sendo substituído por George MacKay–, a personagem feminina era desde o início de Seydoux. Sem ela, é provável que “A Besta” sequer existisse.

“Para mim, Léa é a única atriz francesa que poderia interpretar a personagem nas três épocas. Ela tem algo de atemporal, mas também de muito moderno. Quando olhamos para o rosto dela é impossível adivinhar o que ela está pensando. E isso, para a câmera, é muito atraente.”

BRUNO GHETTI / Folhapress

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