COREIA DO SUL (FOLHAPRESS) – Kubonil caminha entre fileiras de “onggi”, jarras redondas de cerâmica coreanas, que têm metade da sua altura, num campo. Escolhe uma vazia e, com movimentos tranquilos, despeja água com sal dentro. Então, adiciona blocos secos de cor ocre, feitos de soja, e fecha a tampa. Ela só vai voltar a abrir o recipiente dali a alguns anos.
Desse processo, vai surgir o “jang”, molhos e pastas fermentados que são uma das bases da gastronomia coreana. A artesã sul-coreana de 69 anos é uma das responsáveis por manter viva a tradição desse preparo artesanal, reconhecido neste mês como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Unesco.
Kubonil comanda uma produção na região montanhosa de Paju, mais próxima da fronteira com a Coreia do Norte do que dos arranha-céus da capital Seul. Ela inaugurou o espaço há dez anos, quando viu que esse preparo, passado de geração em geração, estava se perdendo. Por lá, recebe visitantes, inclusive turistas, e os guia por uma degustação e explicação, feita com educação exemplar e sorriso no rosto.
São cerca de 400 “onggis” para fermentação. Ela tem uma fabricação diversa de 13 tipos de molhos e pastas, mas são três os principais “jangs”: ganjang (molho de soja), doenjang (pasta de soja) e gochujang (pasta de pimenta vermelha coreana). Os dois primeiros seriam equivalentes ao shoyu e ao missô na culinária japonesa, mas há diferenças nos ingredientes e técnica de preparo.
Para produzi-los, são necessários apenas três ingredientes: água, sal e soja -ou outra base para criar o sabor, como feijão ou milho.
A soja é fervida e transformada em blocos secos, chamados “meju”, que fermentam por meses ao ar livre. Depois, eles são mergulhados numa salmoura com água e sal nas jarras de cerâmica -Kubonil até matura a água com sal por seis meses para aprofundar o sabor, segundo ela. Microrganismos vivos, como leveduras e bactérias boas, fazem a fermentação. O líquido e o sólido são separados ao longo do tempo e viram molho e pasta, respectivamente.
Da mesma jarra saem o ganjang, um molho salgado de coloração quase preta, e o doenjang, pasta de um marrom mais claro. Já parar criar o gochujang, pasta apimentada de tom vinho, é adicionada pimenta vermelha seca ao “meju”.
Todos precisam de bastante tempo para serem produzidos. Kubonil não vende “jangs” com menos de três anos de fermentação -seu molho mais antigo está sendo fermentado há 21 anos. O tempo, ela explica, influencia no sabor e na textura. Também influencia no preço, que varia de 14.000 wones a 100.000 wones (R$ 58 a R$ 420) a garrafa.
Quando produzido de forma industrializada, o “jang” não passa por tempo longo de fermentação. Iniciadores de cultura são adicionados para agilizar o preparo, diferente do artesanal, que mantém o “sabor autêntico e genuíno”, diz a artesã. “A fermentação é a arte da paciência.”
Os “jangs” dão o sabor à comida coreana, que tem como base vegetais e arroz. Ingrediente presente em toda cozinha, ele é usado durante o preparo de sopas e marinadas, por exemplo, e servido em pratinhos na mesa para mergulhar a comida.
“Na hansik [culinária coreana], os processos são bem simples. Tentamos manter o sabor original dos ingredientes o tanto quanto possível. Então usamos o molho como complemento”, diz Kubonil.
Kang Min-goo reinterpreta a gastronomia tradicional coreana e explora diferentes “jangs” nos pratos, inclusive na sobremesa, no seu Mingles, restaurante com duas estrelas Michelin e coreano mais bem colocado no 50 Best da Ásia, em 13º lugar.
“Mesmo quando criamos novos tipos de comida coreana, o importante é manter as raízes na tradição. E você não pode falar sobre comida coreana sem falar sobre jang, que está profundamente enraizado na culinária. Então, para os chefs ele é um ingrediente indispensável”, diz Min-goo.
O livro de receitas mais antigo registrado no país asiático, escrito pelo médico Jeon Sun-ui em 1450, traz detalhes do seu uso. Mas essa é uma técnica milenar e, assim como o kimchi, outra iguaria fermentada, surgiu como forma de preservar alimentos durante o inverno rigoroso. Hoje, cada família tem sua própria receita.
O processo de fazer, manter e consumir “jang” havia sido designado como patrimônio imaterial nacional em 2018, e agora se junta a outras 22 práticas culturais da Coreia na lista mundial Unesco.
NATHALIA DURVAL / Folhapress