SHENZHEN, CHINA (FOLHAPRESS) – Os mercados abarrotados com eletrônicos, peças e componentes em Huaqiangbei, na região central de Shenzhen, até que se parecem com as lojas de produtos “made in China” comuns no mundo todo. Um olhar mais atento, porém, identifica as diferenças e o que se esconde entre acessórios de qualidade duvidosa, celulares de segunda mão e ventiladores portáteis.
É que em nenhum outro lugar do mundo como em Huaqiangbei encontra-se com tamanha facilidade a variedade de componentes necessários para montar um equipamento de alta tecnologia, seja ele um smartphone, um robô ou um drone.
“Você consegue fazer qualquer um deles do zero com as peças daqui”, afirma o empresário brasileiro Jocemar Lima, que desde 2015 trabalha em Shenzhen, cidade conhecida como o “Vale do Silício do hardware”.
O apelido se deve à concentração de grandes empresas e de startups que criam produtos eletrônicos na região. Antes referência na fabricação de itens desenvolvidos no Ocidente, a cidade ganhou protagonismo como centro de design de tecnologia. Gigantes como a Huawei, a montadora BYD e a líder em drones DJI estão sediadas na região.
A importância dos mercados de Huaqiangbei nessa guinada é um consenso, afirma Yi Li Sha, chefe agência de divulgação comercial da administração local. “Essa disponibilidade de peças e o conhecimento adquirido são vantagens que acumulamos”, completa.
O primeiro grande centro de lojas na região abriu nos anos 1980, quando havia fábricas de relógios e eletrônicos ao redor da cidade. Na época, o governo deu incentivos fiscais para que o comércio se desenvolvesse. A burocracia e a logística de então faziam com que a importação de um novo componente demorasse seis meses do pedido a sua chegada.
Quarenta anos depois, isso não acontece. Na região, há mais de uma dezena de mercados, todos com vários andares, que somam centenas de pequenas lojas de balcão.
Gasta-se horas para subir todos os andares e rodar os corredores do comércio. Os chamados “makers”, desenvolvedores de produtos, acham o que querem ali em minutos. A oferta de peças garante que não só as gigantes de tecnologia, mas também os pequenos empreendedores locais criem e testem novos celulares, drones, robôs e computadores.
Essa possibilidade despertou o interesse no brasileiro Jocemar Lima de se mudar para Shenzhen. Na China desde 2012, quando foi expatriado pela brasileira Marcopolo, fabricante de carrocerias de ônibus, ele resolveu seguir no país depois de deixar a empresa, que tem sede Changzhou, próximo de Xangai.
“Aqui era o lugar para empreender”, afirma. Antes da pandemia, ele criou uma empresa que fabricava equipamentos de ensino de robótica para crianças. Conseguiu ser selecionado para uma aceleradora do governo local, que incentiva startups.
Hoje, Lima trabalha também com a exportação de componentes eletrônicos para o Brasil. Passeando por Huaqiangbei, ele explica para que serve aquela profusão de fios, processadores, botões, placas, sensores e chips. Os componentes que antes eram usados para desmontar, consertar e copiar eletrônicos desenvolvidos fora da China hoje são utilizados para aprimorar produtos existentes e criar novos.
Segundo o governo local, Shenzhen foi a cidade que mais teve pedidos de novas patentes na China em 2023. Isso aconteceu pelo 20º ano consecutivo, no período em que o país asiático assumiu a ponta como nação que mais registra propriedade intelectual de invenções.
Desde 2021, quase metade dos pedidos de registro de patentes no mundo foram chineses. O país somou 1,6 milhão, seguido pelos EUA com 594 mil, em 2022, de acordo com o relatório da World Intellectual Property Organization, agência das Nações Unidas que regula o tema.
Os números de Shenzhen impressionam ainda mais quando se conhece a história da cidade. Criada em 1979 de uma vila de pescadores, ela foi a primeira Zona Econômica Especial da China durante a gestão Deng Xiaoping.
Com isso, teve regras diferenciadas do restante do país, que anteciparam a abertura econômica e incentivaram a instalação de empresas estrangeiras. A hoje gigante de 17 milhões de habitantes foi construída ao lado de Hong Kong, que na época ainda era do Reino Unido.
Há 50 anos, pescadores da então vila chinesa fugiam nadando para a rica colônia britânica vizinha, conta a tradutora Ni Xi Fei, de 60 anos. Ela fez justamente o caminho oposto. Filha de pais hongconguês que migraram para Shenzhen, testemunhou e prosperou com o boom econômico da região.
“Deng (que governou o país de 1978 a 1992) era muito inteligente”, diz ela, que administra uma agência que presta serviço de tradução para empresários. “Ele entendeu que não dava para obrigar todos a terem as mesmas pretensões”, completa.
A tradutora cita frases famosas do líder morto em 1997 como “enriquecer é glorioso” e “não importa se o gato é preto ou branco, o importante é que mate ratos”.
Em Shenzhen, a homenagem mais visível ao comunista que abriu a China para o mercado é um mural gigante com uma foto dele instalado na rica e movimentada região central da cidade. “Persista com o caminho fundamentado pelo Partido Comunista sem vacilar”, é o que aparece escrito ao lado da imagem de um sorridente Deng.
PAULO PASSOS / Folhapress