FOLHAPRESS – De um antiquário no Bixiga, passando por uma sala de jantar, até algumas das principais galerias dos Estados Unidos. Essa será a rota de uma natureza morta atribuída ao pintor espanhol Luis Meléndez que retrata uma clássica cena dos “bodegones” do século 18 no país –uma mesa com um vaso, alguns condimentos, uma ave pendurada e uma cesta com limões.
Subjacente à pintura, porém, há uma segunda tela.
“Radiografias são praxe para mim”, diz Douglas Quintale, perito de obras de arte. “Busco sempre pontos de chumbo na tinta ou um eventual esboço por debaixo da pintura, mas, daquela vez, o achado foi impressionante.”
Feita em quadrantes, a radiografia revelou uma figura masculina segurando uma criança nos braços. A descoberta foi feita com o cliente de Quintale, já que os exames foram realizados na sala de estar do dono do quadro, ainda em 2021.
“Não sei o que me deu na cabeça, eu nunca faço a perícia na presença dos clientes”, diz, “mas aconteceu e todos os presentes ficaram muito surpresos”.
Segundo Quintale, não é tão raro encontrar obras subjacentes umas às outras, mas o que impressionou o perito foi a qualidade da obra escondida, que, segundo ele, está muito bem pintada e praticamente finalizada, sem qualquer erro detectado pela radiografia.
“Todas as coincidências se alinharam. Pela pesquisa que fizemos, Luis Meléndez escondeu pelo menos duas obras, pintando outras cenas por cima delas.”
Vindo de uma família de artistas, o pintor é considerado um grande expoente da escola barroca espanhola, sendo mais conhecido pela série de cem pinturas de natureza morta que fez nos últimos 20 anos de vida.
Apesar de ter pintado algumas vezes para o rei Carlos 4º da Espanha, Luis Meléndez não teve seu trabalho reconhecido enquanto viveu –nunca conseguiu um cargo oficial na corte e morreu na pobreza, como indigente.
A história da pintura oculta, porém, é impossível de ser contada. Até agora, segundo Quintale, não se sabe o autor da obra, quem seriam as figuras retratadas ou o motivo pelo qual Meléndez pintou outra cena por cima da tela em questão.
“A tecnologia simplesmente não avançou a esse ponto”, afirma Quintale. “Todo exame de obra de arte tem deficiências que podem desaparecer no futuro. Isso que a ciência faz, ela vai se aprimorando e criando ferramentas. No momento, era o que a gente podia fazer.”
Um método arriscado que permitiria coletar mais informações da pintura subjacente seria a destruição da natureza morta atribuída a Meléndez, o que não é interessante para nenhuma das partes envolvidas.
“O mistério é o ponto alto do quadro”, diz André Munari, porta-voz da empresa detentora da obra. “Será que alguém encomendou o retrato e não pagou? Meléndez, então, pintou por cima, de raiva? Ou só reaproveitou a tela, que sempre foi um material caro? Nunca saberemos.”
Desde sua descoberta, a obra já recebeu propostas de compra no valor de algumas dezenas de milhões de dólares, mas nenhuma foi acatada.
“A gente entende que o quadro merece ser divulgado”, diz Munari, “já surgiram convites interessantes para exposições fora do Brasil porque é uma história bonita, de uma obra extremamente interessante e misteriosa que o mundo vai gostar de ver”.
Há planos de expor a pintura, juntamente com a radiografia, nos Estados Unidos, em cidades como Orlando, Miami e Nova York, além de países como Canadá e Turquia.
A venda do quadro, segundo Munari, deve acontecer de forma orgânica à medida que ele ganhará mais visibilidade.
“As recusas não significam que estamos desdenhando das quantias que nos foram oferecidas, estamos deixando a obra tomar corpo e se tornar cada vez mais icônica”, afirma Munari. “Expondo o quadro, você amplia o leque de pessoas que possam ter interesse nele.”
Marco Fuoco Júnior, sócio fundador da GMARK Investimentos, concorda. “Expôr em grandes galerias mostra um aumento de credibilidade junto a críticos de arte e junto aos próprios compradores”, ele diz.
Para o consultor financeiro, o mercado de obras de arte está revigorado, atraindo cada vez mais investidores interessados no ganho de capital.
Segundo o mais recente relatório da Art Basel, as vendas globais de arte aumentaram 3% em 2022 em relação ao ano anterior, chegando ao patamar de cerca de 67,8 bilhões de dólares, o que elevou o valor do mercado de arte acima do nível pré-pandêmico de 2019.
“Quando vejo os preços das obras de arte nas décadas passadas, observo um aumento real nos valores de comercialização, diz Fuoco, “das dez obras mais caras já vendidas, todas foram pós 2000, com margens de lucro cada vez maiores”.
Antes da venda, portanto, a natureza morta atribuída a Luis Meléndez, juntamente com a radiografia da pintura, começará sendo exposta na América do Norte.
A intenção é que o quadro seja exposto ainda este ano e, segundo André Munari, só é preciso organizar as agendas e esquematizar a logística de transporte de uma pintura de alto valor comercial e histórico.
“Queremos que as pessoas vejam a natureza morta, a radiografia e sintam o mesmo impacto que sentimos pela primeira vez, há três anos. Esse não deve ser um deleite para poucos”, diz.
ISABELLA FARIA / Folhapress