BOA VISTA, RR (FOLHAPRESS) -O Gabão é o caso mais recente de país suspenso da União Africana (UA), bloco que tem como objetivos gerais principais integrar as economias nacionais, estabilizar politicamente o continente e prevenir e resolver seus problemas de segurança. O motivo da suspensão: justamente uma ruptura institucional sob o argumento de “deterioração da segurança nacional”.
Os outros cinco membros atualmente suspensos da UA, que reúne os 54 Estados do continente mais o Saara Ocidental, escancaram a dificuldade do bloco em colocar em prática sua razão de ser. Mali, Guiné, Burkina Fasso, Níger e Sudão, todos passaram por quarteladas recentes e, no caso de Cartum, um conflito entre militares que já deixou milhões de refugiados segue afundado em violência.
“Há uma limitação da estrutura institucional e de recursos, e a isso se somam uma solidariedade entre lideranças e um receio muito grande de ingerência em assuntos internos dos países, que já sofreram demais com o histórico da colonização”, afirma Nathaly Schutz, professora de relações internacionais da Unipampa e da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Exemplo dessa dificuldade de gestão conjunta é a não suspensão em 2021 do Chade, cujos militares tomaram o poder após a morte do ditador Idriss Déby com a promessa de adentrar um período de transição que nunca se concretizou. Com alianças importantes, como a poderosa Nigéria, o país conseguiu que o instrumento não fosse acionado apesar da ruptura institucional, exceção que colocou em dúvida o mecanismo. “Claro que isso tem impactos negativos para a UA e sua eficiência para realmente lidar com as crises”, diz Schutz.
O bloco toma decisões principalmente em sua Assembleia de Chefes de Estado e Governo, que reúne os líderes das 55 nações anualmente no começo do ano em sua sede, em Addis Ababa, a capital da Etiópia.
Já presidiram a Assembleia ditadores como o líbio Muammar Gaddafi, o zimbabueano Robert Mugabe e o chadiano Déby, mas também líderes como o nigeriano Olusegun Obasanjo, participante da transição democrática do país nos 1970 como militar e mais tarde eleito presidente, e Thabo Mbeki, sucessor de Nelson Mandela na África do Sul.
As questões propriamente securitárias são delegadas ao Conselho de Paz e Segurança, com membros eleitos pela Assembleia para mandatos de dois ou três anos. O órgão é responsável pela coordenação da Arquitetura de Paz e Segurança Africana entre a UA e as Comunidades Econômicas Regionais, blocos independentes que funcionam como pilares da união, inclusive em assuntos de segurança e com a possibilidade de uso de forças regionais de mobilização rápida em conflitos.
A UA é herdeira da Organização da Unidade Africana (OUA), que teve papel importante nos processos de independência no continente desde sua criação, em 1963. Outro sucesso político do bloco anterior foi a pressão pelo fim do apartheid na África do Sul.
Logo na década de 1990 o debate de criação de um novo agrupamento para aprofundar a integração do continente no contexto geopolítico do pós-Guerra Fria esbarrou em um dos episódios mais assombrosos da história recente: o genocídio em Ruanda. O assassinato de 800 mil a 1 milhão de pessoas em um país de pouco mais de 7 milhões de habitantes à época e a incapacidade da OUA e outros organismos internacionais de evitá-lo foi um ponto de inflexão para o bloco que substituiria o anterior, em 2002.
Em seu ato constitutivo, junto do princípio de que nenhum país deve interferir nos assuntos internos do outro, está o direito da UA de intervir em um Estado-membro em cenários de genocídio, crimes de guerra e crimes contra humanidade. O aval para isso, contudo, vem da Assembleia, sujeita às pressões políticas e alianças de turno de um continente tão diverso quanto desigual.
É dessa desigualdade que emerge outro problema: a limitação de recursos. Enquanto África do Sul, Egito e Nigéria exercem o papel de potências continentais, o atraso na contribuição de integrantes mais frágeis não é algo raro. Dois terços do orçamento total do bloco em 2022, incluindo toda a fatia reservada a missões de paz, foram financiados por parceiros externos, principalmente a União Europeia. São US$ 429 milhões vindos de fontes fora do bloco africano.
“Uma missão de paz não é barata, porque ela não é apenas o processo de pacificar o país. É preciso reconstruir estruturas, criar meios para que o país consiga prosseguir em estabilidade”, afirma Anselmo Otavio, professor de relações internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
A primeira missão de paz do bloco ocorreu na guerra civil no Burundi, em 2003, e é considerada um sucesso. Já na Somália, a UA ainda mantém operação desde 2007, hoje em colaboração com as Nações Unidas. Também houve operação no conflito em Darfur, região do Sudão que hoje ainda vive disputa e violência política.
Embora algo engessada para lidar com esses e outros elementos desafiadores no continente, como o combate ao extremismo islâmico que floresce em países geralmente com instituições e controle de fronteiras frágeis, a UA tem visto avanços avaliados como fundamentais para as aspirações do bloco.
Aceita neste mês como membro permanente do G20, grupo das 19 maiores economias do mundo, mais a União Europeia, o bloco africano ganha mais espaço no arranjo multipolar defendido como nova etapa da ordem global pela China, grande credora do continente, e pelo Brasil que, como a UA, almeja reforma de órgãos internacionais como o Conselho de Segurança da ONU.
“É um marco [a entrada no G20] importantíssimo na inserção da África no sistema internacional e para o reconhecimento de que o continente não é só passivo, mas age com uma política externa própria, com um posicionamento de autonomia e uma importância geopolítica muito grande”, afirma Schutz.
Em uma perspectiva interna, o bloco também está nas fases iniciais de sua nova Área Continental de Livre Comércio, que entrou em vigor em janeiro de 2021 com o objetivo de ampliar o comércio entre países africanos, hoje apenas na faixa de 15% a 18%, segundo a UA.
GUILHERME BOTACINI / Folhapress