Países precisam se preparar para choques com mais prudência em seus orçamentos, diz chefe do FMI

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O mundo está mais propenso a choques, e os países precisam se preparar para esse cenário com mais prudência em seus orçamentos, diz a diretora-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional), Kristalina Georgieva, em entrevista à reportagem, no Rio de Janeiro, às margens da cúpula do G20.

A receita para o equilíbrio das contas públicas, segundo ela, não é diferente do planejamento de um orçamento familiar. “Certifique-se de usar o dinheiro público de forma eficiente para necessidades públicas prioritárias, mas também para investimentos públicos que promovam crescimento. Quando tomar empréstimos, faça isso de forma prudente”, diz.

Quanto ao desempenho do Brasil, avalia que o país “está indo bem, mas pode fazer melhor” e vê investimentos em oportunidades de crescimento verde como uma possibilidade de alavancar ainda mais o potencial econômico brasileiro.

Ao analisar o cenário econômico, a chefe do FMI fala sem atropelar as palavras, construindo de forma cuidadosa sua linha de argumentação. No médio prazo, mostra preocupação com a combinação de alto endividamento dos países e baixo crescimento. De acordo com estimativa do órgão, a dívida global deve ultrapassar US$ 100 trilhões neste ano e continuar crescendo até 2030.

Georgieva defende que os países se concentrem em reformas para melhorar suas expectativas de crescimento e pede cuidado com ações que possam fragmentar ainda mais a economia global. “Mais protecionismo em um mundo onde o crescimento é baixo é como jogar água fria nessas já anêmicas perspectivas”, afirma.

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PERGUNTA – Qual é sua avaliação sobre a economia mundial no curto e médio prazo, considerando dívida pública, inflação e crescimento econômico?

KRISTALINA GEORGIEVA – A economia mundial tem se mostrado notavelmente resiliente. Estamos vendo a inflação diminuir sem que isso seja acompanhado por recessão. Essa redução da inflação significa que os bancos centrais podem começar a reduzir as taxas de juros. Isso ajudaria tanto o investimento quanto o consumo. O principal fator para essa resiliência é o investimento que os países fizeram desde a crise financeira global em políticas sólidas e instituições fortes, incluindo bancos centrais independentes.

Para o médio prazo, estamos preocupados com o baixo crescimento e a dívida elevada. Esse é o legado do combate à Covid e do impacto da guerra na Ucrânia. Antes da pandemia, o crescimento médio era em torno de 3,8%. Estamos projetando para os próximos cinco anos cerca de 3%. O crescimento está sendo prejudicado pela baixa produtividade, pela demografia, em muitos países, as populações estão envelhecendo, e também por obstáculos regulatórios. Quando você tem, ao mesmo tempo, um nível alto de dívida que está consumindo suas receitas, fica mais difícil investir para impulsionar perspectivas de crescimento nos países.

Isso significa um desafio duplo aos tomadores de decisão. Por um lado, eles têm de reconstruir espaços fiscais que foram exauridos nos últimos anos. Por outro lado, eles têm de injetar mais ímpeto ao crescimento. Em muitos países, há uma pressão muito grande por investimento na transição verde e na transformação digital.

P – Como esse espaço pode ser criado?

KG – Recomendamos que se concentrem em políticas pró-crescimento, como remover barreiras para investimentos privados, construir competências fortes para a nova economia verde e digital, criar condições para que a inovação se traduza rapidamente em oportunidades de negócios e impulsione o crescimento.

Também incitamos nossos membros a serem cuidadosos com medidas que possam fragmentar ainda mais a economia mundial. Entendemos que preocupações com segurança, cadeias de suprimentos, práticas comerciais desleais estão presentes. Mas é preciso avaliar cuidadosamente os custos e benefícios das ações. Mais protecionismo em um mundo onde o crescimento é baixo é como jogar água fria nessas já anêmicas perspectivas de crescimento.

P – Temos a escalada da guerra na Ucrânia, o conflito no Oriente Médio e maior incerteza após a vitória de Donald Trump nos Estados Unidos. Quais são as consequências dos crescentes riscos geopolíticos para a economia global?

KG – Existem consequências complexas. A primeira e mais imediata das guerras, especialmente a invasão da Ucrânia, é que há agora em todo o mundo mais pressão para aumentar orçamentos de defesa. Quando os riscos à segurança aumentam, há uma razão legítima para que os países busquem fortalecer suas capacidades de defesa. Mas isso significa que o dividendo da paz que tivemos desde o fim da Guerra Fria se foi, e o dinheiro gasto em defesa não pode ser gasto em educação, saúde ou outros propósitos.

A segunda consequência é que as preocupações com a segurança econômica também aumentaram. A pandemia de Covid nos fez perceber que a eficiência dos suprimentos é necessária, mas não suficiente, que a segurança dos suprimentos também importa para que as economias funcionem. Vimos uma enorme destruição na atividade econômica devido à interrupção nas cadeias de suprimentos. Portanto, fortalecer as cadeias de suprimentos é uma necessidade. Mas isso também traz custos adicionais.

A terceira é que, em um mundo onde a confiança é erodida, há mais desejo de buscar coalizões com países de mentalidade semelhante. Isso tem impactado negativamente as tendências no comércio global. Pela primeira vez, em muitas décadas, o comércio está crescendo mais lentamente do que a economia como um todo. O comércio costumava crescer mais rápido e servia como um motor de crescimento econômico. Não mais.

P – E quanto à economia do Brasil?

KG – O Brasil superou nossas projeções iniciais, com crescimento agora esperado de 3% para este ano. No médio prazo, o crescimento projetado é de 2,5%, apoiado pela reforma tributária. Os países precisam se concentrar em reformas para melhorar suas perspectivas de crescimento. O Brasil está indo bem, mas pode fazer melhor.

Investimento em oportunidades de crescimento verde pode elevar ainda mais o potencial econômico. Isso será positivo para o país e, claro, positivo para o mundo inteiro. Houve um pequeno aumento na inflação no Brasil que levou a um ajuste para cima das taxas de juros. Na medida em que há projeção de queda da inflação, as taxas de juros cairão. Isso também ajudará na perspectiva de crescimento.

Na América Latina, as perspectivas de crescimento são um pouco limitadas. Buscar maneiras de estimular essas economias continua sendo uma prioridade. Na região, pode ser feito mais para eliminar obstáculos ao crescimento que vêm de regulamentações desatualizadas. A América Latina precisaria pensar sobre demografia, como criar oportunidades para que as pessoas contribuam mais plenamente para a economia.

P – Relatório do FMI mostrou que a dívida pública global atingirá 93% do PIB [Produto Interno Bruto] até o fim do ano e deverá continuar subindo. Isso é sustentável ou estamos cruzando uma linha perigosa?

KG – O aumento da dívida foi impulsionado por fatores exógenos: a pandemia, depois a guerra e, então, a crise do custo de vida. Eles forçaram os governos a fazer mais para proteger suas populações e empresas. Combinado com taxas de juros mais altas, isso significa aumento dos custos de serviço da dívida [encargos]. Isso é pesado para países de baixa renda.

Não estamos projetando uma crise da dívida. No entanto, para um pequeno grupo de países, o problema é tão sério que é preciso realizar uma reestruturação. Temos trabalhado com muitos países de baixa renda, como Chade, Zâmbia e Etiópia, e países de renda média, como Sri Lanka e Suriname. Para países em que a dívida é sustentável, mas ainda assim é um fardo, recomendamos uma abordagem em três frentes.

P – Quais seriam essas frentes?

KG – Primeiro, concentrar-se na mobilização de recursos domésticos. Em muitos países, a arrecadação de impostos é insuficiente, e a carga tributária pode ser melhorada. O Brasil não está nessa categoria. Na verdade, arrecada bastante em impostos.

Em segundo lugar, buscar maneiras de trazer mais recursos internacionais. Nesse sentido, foi o que a presidência brasileira do G20 fez para impulsionar a capitalização dos bancos multilaterais de desenvolvimento, para encorajar instituições financeiras internacionais, incluindo o FMI, a trabalharem como um sistema. Assim, apoiamos coletivamente os países. Em um mundo de necessidades significativas, isso é muito útil.

A terceira via é a melhoria na gestão da dívida. Muito pode ser feito. Por exemplo, como você estrutura seu empréstimo, quanto toma emprestado de fontes privadas, de credores oficiais, como define a gestão do perfil do serviço da dívida para não acabar com um pico em alguns anos.

Uma lição muito importante que vem dos últimos anos é não se planejar com a suposição de que tudo ficará bem. Estamos em um mundo mais propenso a choques. Prepare-se para os choques que virão. Isso significa ser mais prudente na construção de espaços orçamentários. Certifique-se de usar o dinheiro público de forma eficiente para necessidades públicas prioritárias, mas também para investimentos públicos que promovam crescimento. Quando tomar empréstimos, faça isso de forma prudente. Não é muito diferente do que se deve fazer no orçamento familiar.

P – Como novos instrumentos podem ajudar a impulsionar a economia?

KG – Os direitos especiais de saque [SDRs, na sigla em inglês] são uma contribuição muito significativa que o FMI pode fazer com base na força do coletivo. Em 2021, quando fomos atingidos pela pandemia, alocamos US$ 650 bilhões para todos os nossos membros.

Mas alguns têm uma posição de reserva forte e não precisavam disso, enquanto outros tinham necessidades muito urgentes. Então, apelamos a esses membros para emprestar [a países de baixa renda] em condições concessionais [a taxas de juros mais baixas]. Temos mais de US$ 100 bilhões em compromissos para isso.

Criamos o Fundo de Resiliência e Sustentabilidade, dez anos e meio de período de carência, financiamento concessional para políticas de transição climática para ajudar nossos membros a se protegerem contra choques climáticos. Também olhamos para o universo de instituições que se enquadram como detentores prescritos de SDRs e os bancos multilaterais de desenvolvimento estão nessa categoria.

Nosso conselho aprovou a proposta para que os bancos multilaterais de desenvolvimento também estejam em posição de usar SDRs. A ideia é usá-los como capital híbrido. Ou seja, ser capaz de alavancar mais dinheiro com base nos SDRs. Para que isso aconteça, tem de haver uma coalizão de países, tem de reunir esses recursos para proteger o status de qualidade de reserva dos SDRs. Nossa estimativa é que deve haver no mínimo cinco países. O Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Africano de Desenvolvimento estão no processo de contatar países dispostos a contribuir dessa forma.

Estamos trabalhando com o Banco Mundial em uma maneira diferente de mobilizar mais recursos. Temos programas nos quais o FMI cria espaço fiscal por meio do Fundo de Resiliência e Sustentabilidade. Os países usam esse espaço fiscal para acessar programas em larga escala do Grupo Banco Mundial, IDA [Associação Internacional de Desenvolvimento], IBRD [Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento], IFC [Corporação Financeira Internacional], Miga [Agência Multilateral de Garantia de Investimentos].

Com nosso esforço coletivo, podemos fornecer financiamento em uma escala muito grande. O Banco Mundial pode usar esse programa para produzir atratividade para que o capital privado flua para esses programas. A evidência é que o interesse dos países nesse tipo de colaboração é muito grande.

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RAIO-X

KRISTALINA GEORGIEVA, 71

Sófia, 1953

É diretora-geral do FMI (Fundo Monetário Internacional) desde 1º de outubro de 2019. Antes, atuou como diretora-executiva do Banco Mundial e como vice-presidente de Orçamento e Recursos Humanos da Comissão Europeia. É doutora em ciências econômicas e mestre em economia política e sociologia pela Universidade de Economia Nacional e Mundial de Sofia. Nasceu na Bulgária.

NATHALIA GARCIA / Folhapress

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