SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – A neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel juntou as duas pontas da vida, as dificuldades aparentemente inexplicáveis que enfrentava na infância e o fim de seu terceiro casamento, para se dar conta de que talvez tivesse autismo. Depois de confirmar o diagnóstico e de (como disse sua filha) “sair do armário” quase casualmente no Twitter, ela afirma que quer usar a nova autocompreensão para mudar a visão que as pessoas têm sobre essa condição –e para compreender melhor suas bases.
“Uma coisa que ficou muito clara para mim é o seguinte: parem de tentar consertar a gente”, brinca. Ela cita um dos pioneiros da compreensão do que hoje se denomina o espectro autista, o psiquiatra austríaco Hans Asperger (1906-1980). “Na época, ele foi o único a perceber que o problema não era das crianças [do espectro autista], mas dos pais e dos demais adultos, que queriam que todo mundo se comportasse de uma única maneira.”
Herculano-Houzel, que é colunista desta Folha e pesquisadora da Universidade Vanderbilt (EUA), conta que uma das peças do quebra-cabeças que ela só conseguiu encaixar posteriormente foi a leitura do livro “Um Antropólogo em Marte”, do neurologista Oliver Sacks. A expressão do título da obra é uma metáfora usada para se referir à pesquisadora com autismo Temple Grandin, que dizia sentir a mesma estranheza de um antropólogo em Marte ao tentar entender as interações sociais entre pessoas que não eram autistas.
“Era exatamente como a minha mãe sempre se referia a mim. Ela me chamava de marcianinha”, explica a neurocientista. “Bicho do mato” era outra expressão familiar usada para designá-la. Ao mesmo tempo, tal como um antropólogo, ela conta que tentava observar e entender ao máximo o comportamento dos outros –em geral, mais a distância.
“Eu sempre soube que era esquisita, sobretudo quando comparada com a minha irmã, que sempre foi extremamente social, esperta e carismática. Eu vivia quieta no meu canto, acuada. Toda vez que a situação envolvia algum estresse social ou emocional, eu ficava muda, literalmente muda.” Pais e professores tinham de usar uma longa lista de perguntas para a menina calada e debulhada em lágrimas — “foi por causa disso? Foi por causa daquilo?” — até atinarem com a pergunta correta, que era respondida com um aceno de cabeça e o fim do mutismo.
“No final do meu terceiro casamento aqui nos Estados Unidos, eu me dei conta de que a fonte dos atritos, dos desentendimentos eram problemas de comunicação. E todos eles, no final das contas, tinham a ver com o fato de cada um de nós funcionar de maneiras completamente diferentes. E de eu tentar interagir com uma pessoa que achava perfeitamente normal a gente funcionar com base em expectativas e inferências sobre qual foi a intenção do outro”, relata ela.
É aqui que mais uma peça entrou no lugar. Para Herculano-Houzel, isso acontecia porque pessoas com autismo baseiam seu comportamento social exclusivamente em fatos e evidências, que podem ser verificados diretamente por eles –e em mais nada.
“O meu cérebro, ao contrário do de, provavelmente, 95% das pessoas, não pula automaticamente para aquela parte que diz para si mesmo: ‘Fulano fez isso porque deve estar querendo tal coisa, porque a intenção dele deve ser tal coisa’. Isso é um mecanismo de antecipação que é a base do funcionamento do cérebro dos que eu chamo de destros mentais”, compara ela. “Mas os canhotos mentais, que somos nós, funcionam dessa maneira diferente: nada no seu comportamento me indica que a sua intenção era tal coisa, e pronto.” Não se trata de uma questão de empatia, já que pessoas com autismo são igualmente capazes de sentir afeto e compaixão, ressalta.
A tremenda sobrecarga sensorial a que as pessoas com autismo costumam ser submetidas em ambientes com excesso de estímulo também a ajudou a entender melhor como ela sofria de exaustão em aeroportos e após longas viagens internacionais –e por que ela adora usar chapéus de aba larga em ambientes muito iluminados, filtrando o excesso de informação visual. Rindo muito, Herculano-Houzel conta que, ao usar pela primeira vez o direito à fila preferencial para embarcar num avião, acabou se deparando com mais um exemplo da maneira peculiar de se comportar de alguém no espectro autista.
“Foi a primeira vez que eu entrei naquele corredor totalmente vazio rumo ao avião e dei de cara com a comissária de bordo. Ela perguntou: ‘Você está com o cartão de embarque?’ — e eu simplesmente respondi ‘Sim, estou’ e fui entrando sem mostrá-lo para ela”, diverte-se. “Ela teve de vir rápido atrás de mim e me dar um tapinha no ombro.”
Para a neurocientista, não há contradição entre estar no espectro autista e ser capaz de dar palestras com desenvoltura, como ela. “É o meu interesse especial, é a coisa que eu mais gosto no mundo”, enfatiza. “É quando alguém me pergunta sobre alguma coisa que eu sei e pede para ouvir a respeito.”
“Quando o assunto é cérebro, neurociência ou alguma coisa que me interessa profissionalmente, eu deixo de ser a esquisita, bicho do mato, a que não tem papo, e eu falo daquilo enquanto houver alguém interessado em ouvir.”
Herculano-Houzel diz que é importante desfazer percepções errôneas sobre o espectro autista. Ela não vê motivo, por exemplo, para considerar que há uma “epidemia”, como alguns dizem, nem que se trata de um fenômeno predominantemente masculino. “A ideia de que a taxa de meninas no espectro está aumentando só agora, por exemplo, tem muito mais a ver com o fato de que as mulheres são socializadas de forma muito mais intensa para evitar comportamentos vistos como excêntricos”, aponta.
Também são relativamente bastante raros, argumenta, os casos em que a presença do espectro autista tem impacto severo sobre o desenvolvimento cognitivo. “É algo que precisamos entender melhor. É possível que a variabilidade dentro do espectro autista explique parte disso. Também é possível que haja, em paralelo, o autismo e a deficiência intelectual, que é algo diferente, nas mesmas pessoas. Ou então alguns dos muitos tipos de deficiência intelectual têm elementos compensatórios comportamentais que se parecem com o autismo.”
Para a neurocientista, a tendência a identificar padrões nos mais diversos tipos de dado é um elemento do espectro autista que ajuda a entender a atração que a pesquisa exerce para pessoas como ela. “É o que me distrai nos momentos mais difíceis. Basta colocar um conjunto de dados, um gráfico na minha frente”, brinca. “Isso mostra a riqueza que existe na diversidade de maneiras como o cérebro humano funciona. É algo a ser celebrado.”
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress