Parte do arsenal do crime organizado é formada por armas desviadas de Exércitos, dizem pesquisadores

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A investigação sobre o desaparecimento de 21 metralhadoras de grosso calibre de uma base militar na Grande São Paulo indica que as armas podem ter sido oferecidas ao Comando Vermelho e outras facções criminosas do Rio de Janeiro.

De acordo com pesquisadores consultados pela reportagem, o desvio de armas do Exército é uma das principais origens do arsenal empregado em ações do crime organizado no Brasil.

“Essas armas mais pesadas, como metralhadoras .50, não estão disponíveis no mercado civil -mesmo fora do país, você não consegue comprar. Em geral, são desviadas de forças armadas, tanto no Brasil como em outros países da América do Sul”, afirma Bruno Langeani, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, que cita Paraguai, Bolívia e Colômbia entre as origens dessas armas, que entram no Brasil por fronteira terrestre.

Um levantamento feito pelo instituto mostra que 67 armas foram desviadas de quarteis entre 2009 e 2020 -os dados foram fornecidos pelo Exército Brasileiro após solicitações via Lei de Acesso à Informação.

Mesmo não sendo o primeiro caso de desvio em quartéis miliares, o episódio descoberto no último dia 10 preocupa pela quantidade e natureza das armas envolvidas. Das 21 metralhadoras desviadas, 13 eram de modelo. 50, com capacidade de disparar até 550 tiros por minuto e alcance de 2,8 km.

O interesse de organizações criminosas por esse tipo de armamento está ligado ao alto poder de destruição. Metralhadoras .50 têm capacidade de perfurar blindagem leve e eficácia contra aeronaves em baixa altitude. No Rio de Janeiro, é utilizada por facções para defesa territorial contra operações policiais e em confrontos com grupos rivais.

O armamento também tem sido empregado em ações do “novo cangaço”, quando quadrilhas fortemente armadas atacam cidades para roubar agências bancárias. “Nesse tipo de ação, os criminosos muitas vezes posicionam essa arma na frente de um batalhão da Polícia Militar, para impedir a decolagem de helicóptero ou saída de viaturas, e com isso eles conseguem, em cidades pequenas, ficar várias horas roubando bancos sem nenhuma possibilidade de reação da polícia”, afirma Langeani.

Ainda segundo o pesquisador, as quadrilhas costumam alugar os armamentos de organizações maiores e mais estruturadas, como o PCC (Primeiro Comando da Capital). “São somente organizações criminosas com muito poder e muito dinheiro que têm capacidade de custear uma operação de desvio como essa e de ter logística para ocultar essas armas”, acrescenta. No mercado ilegal, cada .50 chega a custar R$ 200 mil.

Segundo o Exército Brasileiro, as armas desviadas do AGSP (Arsenal de Guerra de São Paulo) eram “inservíveis” e foram enviadas à unidade para manutenção e, possivelmente, descarte. Para Langeani, entretanto, a condição dos armamentos não diminui a gravidade do desvio.

“Temos conhecimento de muitos casos de ex-militares que aprenderam a fazer manutenção dessas armas nas Forças Armadas e depois acabaram recrutados por facções criminosas para cuidar de seus arsenais. Então essa informação do Exército não é atenuante para o caso, porque o próprio estado acaba fornecendo mão de obra qualificada que o crime pode utilizar para fazer com que essas armas voltem a funcionar”, afirma o pesquisador.

Passados dez dias da descoberta do desvio, 160 militares de diferentes patentes continuam aquartelados no AGSP, na cidade de Barueri. Como mostrou a Folha, o Exército identificou ao menos três suspeitos de participar do furto das armas e a Força investiga se o trio foi cooptado por facções criminosas.

Segundo o policial federal Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as características do armamento reforçam a suspeita de envolvimento de militares no furto. “As metralhadoras de calibre .50 são armas manuseio e transporte difíceis, cada uma pesa em torno de 50 kg”, afirma. Além das 13 metralhadoras .50, oito fuzis 7,62 também foram desviados na ocorrência da semana passada.

Para os especialistas ouvidos pela reportagem, o episódio demonstra fragilidade no controle do Exército sobre seus arsenais. “Organizações criminosas estão construindo seus arsenais ao longo do tempo a partir de falhas do próprio estado. Quando há desvios em quarteis, ou houve atuação de agentes corruptos, ou completa negligência no controle dessas armas”, disse Uchôa.

Por meio de nota, o Comando Militar do Sudeste disse que a linha de investigação mais provável é de que o furto das armas do AGSP contou com a participação de militares, “embora nenhuma hipótese tenha sido descartada até o presente momento”. Segundo a investigação, o desvio deve ter ocorrido entre os dias 5 e 8 de setembro.

“As ações estão sendo conduzidas pelo Comando Militar do Sudeste, de maneira integrada com o apoio dos órgãos de segurança pública, agências e com orientação do Ministério Público Militar e da Justiça Militar da União, com o objetivo de apontar os responsáveis e recuperar o armamento no mais curto prazo”, diz o comunicado. Por causa do desvio, o Exército trocou nesta semana o oficial no comando do AGSP.

Nesta quinta-feira, oito das 21 armas desviadas foram encontradas e apreendidas pela Polícia Civil do Rio de Janeiro em uma comunidade da zona oeste, sendo quatro .50 e quatro 7,62.

LEONARDO ZVARICK / Folhapress

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