BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A transferência indiscriminada de terrenos de marinha da União para particulares, como prevê a chamada “PEC das praias”, pode colocar interesses privados à frente de interesses públicos, afirma à reportagem a secretária-adjunta de Patrimônio da União, Carolina Stuchi.
Segundo ela, manter os terrenos sob domínio da União “não prejudica o direito dos atuais ocupantes”, que podem continuar exercendo suas atividades nas áreas onde estão instalados, desde que respeitando as regras vigentes.
Além disso, ela sinaliza disposição do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em fazer a transferência “naqueles casos em que de fato não faz mais sentido que a União tenha domínio”.
Para isso, porém, ela considera necessário discutir aperfeiçoamentos legais que permitam acelerar o processo de demarcação, estabelecer critérios claros para avaliação dos imóveis e pagamento, além de manter as salvaguardas atuais que garantem a proteção de áreas estratégicas para a soberania, a defesa nacional e a sustentabilidade de ecossistemas.
“A principal questão [da PEC] é a inversão, o interesse privado se sobrepor ao interesse público”, afirma. “Quando a intenção é fazer essa transferência indiscriminada para particulares, vai certamente favorecer a especulação dessa região, a compra e a venda, a possibilidade de ter mais terrenos contíguos, fazer empreendimentos maiores.”
Os terrenos de marinha são áreas à beira-mar que ocupam uma faixa de 33 metros ao longo da costa marítima e das margens de rios e lagos que sofrem a influência das marés. Elas foram medidas a partir da posição da maré cheia do ano de 1831. Ou seja, em cidades litorâneas, são áreas que ficam atrás da faixa de areia.
A propriedade desses imóveis é compartilhada com a União, que cobra uma taxa de foro pelo uso e ocupação do terreno. Em caso de transferência para outro titular, é preciso pagar outra taxa, o laudêmio.
A PEC revoga o artigo que diz que os terrenos de marinha são bens da União e elimina a exigência da chamada faixa de segurança, permitindo a privatização de áreas rentes às praias o que hoje é proibido. O texto ainda diz que a cessão será obrigatória, ou seja, os agentes privados deverão adquirir o terreno independentemente de interesse.
Stuchi alerta que a privatização compulsória dessas propriedades pode comprometer interesses estratégicos do país. Ela dá como exemplo uma área na praia do Futuro, em Fortaleza (CE), que abriga a estrutura de cabos de internet que chegam da Europa e garantem a manutenção da rede em toda a América do Sul.
“É uma infraestrutura considerada crítica porque precisa ser protegida, e é importante que a União possa mediar quais são as utilizações que podem ser feitas numa região tão estratégica”, afirma.
“Tudo que serve à proteção ambiental, à preservação dos ecossistemas, às áreas de infraestrutura, aos serviços públicos federais precisam ser preservados. E não dá para congelar esse interesse agora, é importante preservar o interesse das gerações futuras, [adotar] uma visão de longo prazo em relação à importância estratégica desse território”, acrescenta.
A secretária diz ainda que revogar o artigo que trata os terrenos de marinha e seus acrescidos como bens da União, embora não signifique uma “privatização das praias”, tiraria a competência federal de fiscalizar o cumprimento das regras de livre acesso às praias.
“Ela [a PEC] pode favorecer [o descumprimento das regras]. Hoje a gente já tem vários empreendimentos ou vários particulares que ocupam essas regiões e que tentam fazer isso [bloquear o acesso à praia], mas hoje há uma legislação clara que impede e um processo de fiscalização que é feito e que pode seguir sendo feito”, afirma a secretária.
Apesar das críticas à PEC, Stuchi reconhece que a legislação atual impõe alguns entraves a situações de legítimo interesse na demarcação do terreno de marinha ou na compra da fatia do terreno que hoje pertence à União. Ela defende diálogo com o Congresso para endereçar esses problemas de maneira mais apropriada.
A secretária dá como exemplo o caso das demarcações. Hoje, o governo estima ter cerca de 48 mil quilômetros lineares de costa, considerando todas as reentrâncias para o interior dos territórios, mas só 15 mil quilômetros já foram demarcados.
O Executivo federal já tentou agilizar o processo com a adoção de editais públicos para convocar os envolvidos na discussão sobre as áreas. O tema foi parar no STF (Supremo Tribunal Federal), que declarou a inconstitucionalidade da ferramenta por considerar que ela ofende as garantias do contraditório e da ampla defesa.
Como consequência, o governo precisa fazer as notificações pessoalmente ou encaminhá-las com AR (aviso de recebimento).
“Óbvio que é burocrático e moroso fazer uma notificação via AR, esperar esse AR voltar e ter que escanear para juntar no nosso processo. É o jeito que a gente gostaria de estar fazendo? Não, mas é o jeito que a legislação e a interpretação da legislação nos exige. Então, se a gente puder aproveitar essa oportunidade e debater esses aperfeiçoamentos que podem fazer um processo mais eficiente, a gente vai aproveitar”, afirma a secretária.
Eventual mudança nesse ponto dependeria de uma PEC, ou então de um novo questionamento ao STF sobre o tema.
O caráter voluntário da cessão dos terrenos também é considerado um ponto importante, não só para preservar os interesses da União, mas também dos particulares envolvidos.
Em audiência pública para debater a PEC, a gerente técnica da ATP (Associação de Terminais Portuários Privados), Ana Paula Gadotti, disse que a compra obrigatória de 17% a 100% dos imóveis, a depender do caso, pode não interessar às empresas diante do impacto substancial no caixa das companhias que operam os terminais.
Quem ocupa terreno de marinha paga as taxas de foro ou laudêmio sobre uma planta de valores, semelhante ao valor venal que serve de referência para o IPTU. Já a aquisição precisa ser feita com base no valor de mercado do imóvel, usualmente bem maior.
Em 2021, o governo de Jair Bolsonaro (PL) lançou um aplicativo para facilitar a remição do foro em terrenos de marinha. Entre julho daquele ano e maio de 2023, apenas 761 dos 14.569 imóveis credenciados para a ferramenta tiveram a remição concluída uma adesão de 5,22%. O resultado foi visto como sinal de baixo interesse dos ocupantes.
IDIANA TOMAZELLI / Folhapress