SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Gosto do cheiro de pele de galinha e mato molhado”, declara a atriz Maria Manoella, enquanto esparrama, displicente, o conteúdo de uma sacola de lixo pelo palco. Aquela é a preparação do cenário do espetáculo, alerta sua personagem, ranzinza e sem nome, mas ela preferia com certeza estar no interior, de férias ou capinando o mato na roça de onde veio.
O palco é como um planeta novo em “Aqui Elevado a 1 Trilhão”, peça assinada e dirigida por Elisa Ohtake, que questiona o sentido do teatro num mundo desconectado da natureza e à beira de um colapso.
Cada um dos 12 personagens entra em cena apenas uma vez, sozinho, para contar de onde veio e o que deixou para trás para estar ali no momento, preparando o cenário.
São viajantes sem nome, que trazem pedaços de plástico colhidos nas paisagens naturais onde estavam, quase como suvenires de uma realidade distópica e assombrosamente próxima. As roupas futuristas também feitas de plástico, criadas por Juliano Lopes, se somam à trilha sonora eletrônica para reforçar a ideia de que as histórias se passam fora do planeta Terra.
Filha do arquiteto Ruy Ohtake e da célebre diretora e atriz Célia Helena, Ohtake seguiu os passos da mãe, com o diferencial de que a dança e a performance exercem um papel central em seu trabalho.
Em “Aqui Elevado a 1 Trilhão”, o destaque para o corpo vai além do balé sobre gelo falso do ator Roberto Alencar, que entra no palco com uma capa de plástico preta estilo “Matrix” anunciando que foi contratado para fazer um anúncio de vitamina C no polo sul.
Todos os sem nome estão com raiva ou desesperados. Esses sentimentos são extravasados em gesticulações exageradas, gritos repentinos ou até em socos, pulos sobre montanhas de plásticos e na destruição de objetos em cena.
Manoella, por exemplo, bate cabeça e grita ao estilo heavy metal enquanto relembra o saudoso cheiro do mato. “É uma grande brincadeira, uma antítese dessa ideia do campo contemplativo e bucólico”, diz.
Em novembro do ano passado, a atriz deu vida a “Escute as Feras”, livro da antropóloga francesa Nastassja Martin, em um monólogo sobre como o encontro repentino com um urso muda profundamente a sua vida e a do animal.
Outro personagem, vivido por Michel Joelsas, traz dois sacos de resíduos encontrados em “um terreno baldio na Amazônia”. Em seguida, ele espanca a pilha de plástico com um martelo antes de se pendurar em uma corda e, como um salto no abismo, descartar a si próprio sobre o lixo.
O ódio reprimido de cada um deles incendeia a revolta comum diante de um mundo contaminado. O ator Rodrigo Pandolfo, ator de “Minha Mãe É Uma Peça”, entra em cena vestindo um casaco transparente com vários bolsos.
A cada momento ele diz que veio de um lugar diferente, para em seguida desmentir a si próprio em cena. Para dar veracidade a suas narrativas, tira de dentro dos vários bolsos de um casaco transparente provas de onde esteve, como uma garrafa plástica com a água de um exuberante rio que banhava um vilarejo e que, na verdade, era seu esgoto.
“O teatro brinca com a mentira, e ele está incessantemente revelando esse jogo”, diz Ohtake. “Os lugares os transformam. O mundo é trazido para o teatro ironicamente, em forma de lixo”. Há certa nostalgia nas descrições dos viajantes, como se estivessem de luto pelas paisagens que viram.
Outra viajante discorre sobre uma performance teatral que faria em meio a duas montanhas na cordilheira dos Andes. Impactada pela magnitude do cenário, ela repete que, depois de ver aquilo, já estava pronta para morrer.
Outros, porém, parecem alienados. Uma influenciadora digital, vivida por Aretha Sadick, entra em cena jogando computadores pelos ares e anunciando a sua mais nova criação, uma robô virtual que criará as paisagens do futuro. Outro está perdido e não lembra onde esteve. Perturbado pelo colapso ambiental, ele não consegue sofrer, porque não pertence a lugar algum.
O último dos personagens a se apresentar, um malabarista que a diretora encontrou na esquina da avenida Rebouças com a Brasil, em São Paulo, conta a única história real dentre as 12 do espetáculo. “Ele me disse que viajou por sete países da América Latina só com o dinheiro que ganhou fazendo malabarismo. Tudo a ver com a peça”, diz Ohtake.
“Estamos perdendo a qualidade de presença na vida, cooptados pelas telas de celular”, diz Manoella. Ela classifica a violência expressiva dos viajantes como um manifesto radical de presença. “O vigor, a força e a intensidade desse espetáculo são sinônimos de presença, que está cada vez mais obsoleta.”
O retorno de todos ao palco para preparar a peça é uma ode ao teatro. “Sem ator e plateia, não existe teatro. Teatro é presença. É radicalmente um encontro”, afirma Manoella.
“O auge do teatro durou mais de 20 séculos, até a chegada da televisão. O teatro é ferida que não morre”, brada a personagem que finaliza o espetáculo. Depois que todos terminaram de montar o cenário, a atriz Georgette Fadel entra como uma extraterrestre, vinda de outra galáxia ou do futuro, que não tem papas na língua.
“O que é o aqui num mundo onde ninguém mais lembra do aqui, onde não se presta mais atenção no aqui? Aqui, a natureza é fantasma”, ela diz.
Mas há outro motivo pelo qual os viajantes voltam ao palco, uma metáfora para o presente. Parafraseando a bióloga Donna Haraway, a alienígena lembra que escolhe o problema porque é a partir dele que algo pode acontecer. “É sempre a partir do aqui, de encarar o que está acontecendo que algo pode mudar”, afirma Ohtake.
AQUI ELEVADO A 1 TRILHÃO
– Quando Qui., sex. e sáb., às 20h; dom., às 18h
– Onde Sesc 24 de Maio – r. 24 de Maio, 109, São Paulo
– Preço R$ 50
– Classificação 14 anos
– Elenco Com Maria Manoella, Rodrigo Pandolfo e Georgette Fadel
– Direção Elisa Ohtake
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress