SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma ilha chamada Lá está em guerra. Duas irmãs vivem o luto desolador que acompanha o desaparecimento de seus filhos, convocados para lutar. Ana, uma delas, congelou o corpo do cachorrinho morto para que o filho pudesse se despedir do animal.
É justamente o cãozinho que narra a história da família na peça “Cão Gelado”, em cartaz no Sesc Pompeia. “Meu maior medo é o esquecimento”, confessa o animal. Parado no tempo, ele lembra do cotidiano alegre e dá pistas sobre um segredo que rachou o seio familiar.
A melancolia paira sobre toda a peça, uma ode à memória escrita como poesia por Filipe Isensee e publicada pela editora Cobogó. No palco, o cenário é praticamente inexistente, composto apenas por um fundo de placas metálicas que refletem a iluminação principal e microfones em pedestais.
“Não tem coxia, há pouca luz, é bruto. Com o mínimo, a poesia consegue criar som, movimento e imaginação, sobretudo, porque o teatro é uma tecnologia de imaginação”, diz Gunnar Borges, diretor do espetáculo.
O som molda o espaço, com barulhos de bombardeio, gotas de água pingando em uma cela e vozes animadas da vizinhança, enquanto alguns trechos do enredo são entoados pelos atores. Nenhum texto foi acrescentado à dramaturgia, e o que é cantado são passagens impactantes do texto original, transformadas em melodia.
Os sons são misturados com ritmos eletrônicos para compor trilha sonora do espetáculo. Ecos constantes intensificam a melancólica nostalgia das mães e do cãozinho congelado. “Os arranjos foram criados nos ensaios e depois divididos em faixas para serem articulados às cenas”, diz Azullllllll, responsável pela produção musical da peça.
A fórmula acrescenta o realismo fantástico, tão caro às narrativas latino-americanas, ao teatro musicado de Bertolt Brecht e às fábulas cantadas dos primórdios da encenação, na Grécia antiga. “Não é um musical, mas há um coro. É uma espécie de operetta contemporânea”, diz.
A peça obedece a máxima de Herman Melville, autor de “Moby Dick”, de que o mar atiça os sonhos do homem. Muitas das captações dos sons industriais e metálicos, conta, foram feitas dentro de um navio. Os movimentos dos atores tampouco são comuns seus corpos se enroscam em diálogos raivosos e se acariciam em interações melancólicas, reproduzindo uma comunicação corporal quase animalesca.
Borges diz que imaginou Lá não como uma ilha, mas como Atlântida, uma cidade no fundo do mar. “Trabalhamos o movimento dos cardumes, as articulações, ondas, circularidade. Tudo foi composto pensando a ideia de mar, ondas e peixes abissais.”
Mas a trama é pé no chão, apesar da poética que a envolve. Alfonsina, interpretada por Nívea Magno, descobre logo no começo da peça que seu filho morreu, e o enterra no mar. Ela então busca o conforto da irmã, Ana, vivida por Kênia Bárbara, com quem não falava desde o começo da guerra quando seus filhos foram convocados e desapareceram.
Isso porque Alfonsina apoiou a eclosão da guerra em Lá para proteger seu filho, mas foi enganada pelo general do regime. Quatro anos se passaram, e Ana ainda espera pelo filho, sem saber o que aconteceu.
O general, vivido por Lucas Oradovschi é ridiculamente másculo, ironia escancarada pela bolinha que usa no pênis quando apertada, faz barulho. Enquanto tentam descobrir o que de fato aconteceu com seus filhos, Ana e Alfonsina se aproximam e relembram o passado, enquanto o espectro do cão, vivido por Tomás Braune, vaga pelas suas próprias memórias, ingênuo sobre os segredos familiares ou os motivos do conflito.
“O cão guarda um olhar poético sobre a própria guerra. Ele não ameniza a dor, mas enquanto todos sofrem, ele ainda consegue ser utópico. Seu olhar sobre a guerra vem preenchido de afeto, de perspectiva do futuro”, diz Borges. O animal, que morreu ao engolir uma das muitas fitas cassetes gravadas pelos filhos às mães sobre sonhos e memórias, parece ser o elo da família com o próprio passado, guardião de uma vida digna e feliz.
A dor, para o cão, pode mudar as coisas para melhor. É justamente o sofrimento que leva Alfonsina, uma representação do tempo presente em uma história sobre o passado, a recrutar as outras mulheres de Lá para vingar os mortos. “Ela tem urgência pelos vivos”, diz Nívea Magno, que dá vida à personagem. O levante feminino vira a reconciliação para a ruptura familiar.
“É um matriarcado negro contra a opressão de um general”, diz Borges. Para o diretor, a peça faz um paralelo com o Rio de Janeiro, cidade dos artistas. “As mães vivem à espera dos filhos nas favelas. Marielle não conseguiu transformar generais em cão, isso só o teatro pode fazer, mas propomos esse imaginário. E só o teatro pode fazer isso.”
CÃO GELADO
– Quando Quinta, sexta e sábado às 20h. Domingo às 17h. Até 14/04
– Onde Sesc Pompeia -r. Clélia, 93, São Paulo.
– Preço R$ 50
– Classificação 16 anos
– Autoria Filipe Isensee
– Elenco Azullllllll, Jef Lyrio, Kênia Bárbara, Lucas Oradovschi, Nívea Magno e Tomás Braune
– Direção Gunnar Borges
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress