SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No mês em que o golpe militar completa 60 anos, memórias são resgatadas com a chegada da peça “Murro em Ponta de Faca”, de Augusto Boal, ao Teatro de Arena, no centro de São Paulo, um espaço histórico em que o dramaturgo e encenador dirigiu espetáculos emblemáticos como “Arena conta Zumbi”.
Inspirado na solidão dos que viviam fora do país durante a ditadura militar, o texto foi escrito em 1974, quando Boal morava em Portugal e “sentia o vento e o frio da viagem sem fim”. O exílio político dele durou 15 anos, de 1971 a 1986, e incluiu passagens pela Argentina e pela França.
O espetáculo sobre três casais de exilados brasileiros foi montado pela primeira vez em 1978, após a liberação da censura, pela Companhia de Teatro Othon Bastos, sob direção de Paulo José, no Teatro de Arte Israelita Brasileiro. Nessa época, Boal, criador do Teatro do Oprimido, ainda perambulava pelo mundo para não ser preso e torturado novamente, como já havia ocorrido em 1971.
A montagem contemporânea, realizada pelo grupo Pedra Livre, com direção de Kiko Marques, fica em cartaz até 28 de abril. Faz parte dos atuais rituais de lembranças do período de perseguições, censura e violência.
Nas sessões de leitura do texto, os jovens integrantes do grupo perceberam que o dramaturgo escreveu a peça pensando no Arena. Com 90 lugares, ele é um teatro que abraça o espectador, na definição de Marques.
“É um palco que todo ator precisa pisar um dia. A relação que se estabelece com o público é uma coisa rara”, afirma o diretor. “Alguns palcos têm magia, capacidade de conexão. Os fantasmas do teatro são o tempero e os do Arena são inacreditáveis”.
Na montagem atual, o aspecto humano da vida no exílio foi o que mais interessou o grupo e é o condutor do espetáculo, encenado entre malas abertas, um fogão improvisado e um caixão usado para enganar a repressão nos momentos de fuga.
O tom político do texto original foi minimizado e cede espaço para as relações entre pessoas que vivem meia vida enquanto não sabem quando, e se, poderão voltar ao país de origem.
Angústia, instinto de sobrevivência, resiliência, música, desespero, notícias ruins, uma moqueca bem temperada, sexo, amor, estratégias para escapar, encontros, desencontros, esperança e diversidade são elementos presentes no confinamento.
O ator cearense Warner Borges resgatou o sotaque nordestino para interpretar Barra, que prepara a moqueca e consegue manter o bom humor, apesar dos anos de luta política e das inúmeras fugas, pulando de país em país.
“É quase um olhar para mim, para as raízes. Tento levar para a cena esse olhar mais leve sobre as próprias dores. Tem muito isso no cearense que ri da própria desgraça e segue em frente”.
O texto foi redescoberto pela atriz Michelle Gabriolli, que começou a carreira no Teatro Popular União Olho Vivo, sediado do Bom Retiro, e sempre valorizou a dramaturgia brasileira. “Li e senti uma emoção absurda. Isso é um tesouro que temos”, diz. “Tem jogo teatral, que é o que a gente queria fazer”.
A conexão com as ameaças atuais de autoritarismo é inevitável. “O 8 de janeiro tem uma ligação nítida com o que aconteceu em 1964”, destaca o ator, músico e produtor Alex Huszar. “É muito necessário relembrar. Tem pontos relevantes, mesmo sendo uma peça de época”.
Huszar fez um trabalho de recriação de músicas para o espetáculo, com trechos em que a trilha original é citada como uma espécie de homenagem ao compositor da época, Chico Buarque.
As músicas da montagem atual aparecem como soluções cênicas que fogem do lugar-comum dos espetáculos que abordam a ditadura e, em grande parte, foram compostas a partir de sugestões que Boal deixou no texto.
Segundo o diretor, a montagem prima pelo encontro com o público e há o desejo de atrair pessoas que não conhecem o Arena, a história de Boal e até mesmo as que não compreendem o que foi o golpe militar e seu histórico de repressão.
Marques já abordou a ditadura como pano de fundo por meio da peça “Shíntia”, da Velha Companhia, sobre a história de uma família com seus afetos e conflitos.
Filho de um coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro, o diretor cresceu na cultura do silêncio que tanto marcou as crianças nos anos de chumbo. “Descobri que havia tido um golpe militar depois de 20 anos. Era uma coisa que não se falava, não se tocava”, lembra. “Somos frutos desse autoritarismo intrínseco”.
Uma das personagens da peça, Maria, interpretada por Lara Arvati, deixa explícito que o texto foi um grito de desespero. Entre desamparo e crises nervosas, ela sintetiza o drama dos que não resistiram à escuridão.
A personagem é inspirada em Maria Auxiliadora Lara Barcellos, a Dodora, guerrilheira da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária, presa, torturada e banida do país. Após passar por diversos lugares e tentar voltar ao Brasil, Dodora cometeu suicídio aos 30 anos, em Berlim.
Nos agradecimentos, no final da estreia, o grupo citou a importância de falar sobre a ditadura militar não para remoer o passado, como declarou o presidente Lula, mas para que ela não aconteça novamente.
MURRO EM PONTA DE FACA
Quando: Até 28 de abril. Sextas, às 20h. Sábados e domingos, às 19h.
Onde: Teatro de Arena -r. Dr. Teodoro Baima, 94, São Paulo
Autoria: Augusto BoalElenco Alex Huszar, Heitor Garcia Lima, Lara Arvati, Michelle Gabriolli, Miriam Madi, Warner Borges
Direção: Kiko Marques
CRISTINA CAMARGO / Folhapress