(FOLHAPRESS) – Quando “Casa de Bonecas”, a peça em três atos do norueguês Henrik Ibsen, estreou no Teatro Real de Copenhagen no final de 1879, houve uma pequena comoção na sociedade da época. “A batida de porta que toda a Europa ouviu” se tornou a alcunha da cena final da montagem, em que a protagonista Nora sai de casa, deixando seu marido sem palavras no meio da sala.
O interessante é que o barulho causado pela peça não foi a temática feminista que vemos com os olhos de hoje, e sim o fato de uma mulher -e mãe- abandonar marido e filhos, algo inconcebível a ponto de atrizes terem se recusado a interpretar uma personagem capaz de ato tão sórdido.
O próprio Ibsen negou qualquer intenção política com a obra e, num episódio anedótico, diante da Liga Norueguesa dos Direitos das Mulheres, declarou: “É desejável resolver os problemas das mulheres, assim como todos os outros, mas esse não era o meu objetivo. Minha tarefa tem sido a descrição da humanidade”.
O mesmo não se pode dizer de Elfriede Jelinek, a Nobel de Literatura austríaca que, cem anos depois, veio explorar todo o potencial político da mesma personagem.
Com o título autoexplicativo “O que Aconteceu Após Nora deixar a Casa de Bonecas”, a peça de 1979, traduzida agora pela primeira vez no Brasil, faz uma espécie de teletransporte da personagem de Ibsen para a Alemanha dos anos 1920 -o período da crise entre guerras.
Jelinek não foi a primeira a brincar com o original de Ibsen. Clare Boothe Luce havia lançado em 1970 “Slam the Door Softly” (bata a porta com leveza), peça em um ato que foca a conversa entre Nora e seu marido. Nesta versão, existe um diálogo mais profundo e íntimo entre o casal, que termina de forma similar -Nora se vai-, mas deixando a impressão de que ela talvez volte depois da jornada de busca de identidade.
É outro o caminho tomado pela peça de Jelinek, que começa na entrevista de emprego de Nora numa fábrica decadente. Inserida no ambiente operário, em que a força de trabalho é a única coisa que se pode vender, a personagem acredita que o emprego lhe dará a tão sonhada emancipação.
Faz sentido: a austríaca sempre mostrou interesse na causa feminista e nas diferente formas de opressão da mulher na sociedade moderna. Ao transportar a crise de Nora para fora do ambiente doméstico, ela demonstra que uma crise de identidade individual está sempre intimamente ligada ao papel social do indivíduo.
A mensagem de Jelinek é clara: fora da casa de bonecas, existe um patriarcado esmagador. Pouco a pouco, Nora perde confiança e se dá conta de sua submissão às engrenagens de um mundo dominado por homens.
O recado é mórbido, mas a peça não. Jelinek escreve de forma sarcástica, com uma pitada de surrealismo em diálogos repletos de trocadilhos e metáforas.
É algo que não escapou à equipe de tradutores, Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr. e Ruth Bohunovsky, como escrevem no prefácio: “Seguimos um conselho que a própria autora dá para a tradução da sua obra: em caso de dúvida, escolha o cômico. (…) Por vezes, trocamos os formatos (uma rima por um trocadilho) e, eventualmente, escolhemos perder o amigo para não perder a piada, e colocamos, onde antes não havia nenhuma graça, uma ocorrência nova.”
O trabalho a oito mãos, assim como a bela formatação da editora Temporal, trazem agilidade e respiro à leitura. Fica, contudo, uma sensação comum ao ler peças de teatro -o desejo de as ver encenadas- e a esperança de que o lançamento sirva de inspiração para que essa obra de Jelinek chegue aos palcos.
O QUE ACONTECEU APÓS NORA DEIXAR A CASA DE BONECAS OU PILARES DA SOCIEDADE
Avaliação Muito bom
Preço R$ 68 (192 págs.)
Autoria Elfriede Jelinek
Editora Temporal
Tradução Angélica Neri, Gisele Eberspächer, Luiz Abdala Jr. e Ruth Bohunovsky
HELEN BELTRAME-LINNÉ / Folhapress