SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Três mulheres de cabelos cacheados e volumosos, vestidas com camisetas listradas e óculos escuros, entram em um palco dividido em dois andares para entoar poemas de Ana Cristina César.
“Ela ficava olhando pela janela/ que não era, nem existia como janela/ Ela ficava olhando pelo buraco”, depois que declamam os versos escritos pela poeta brasileira no aniversário de seis anos da morte de Sylvia Plath, confessam: “Ana Cristina César, queremos trepar com você”.
As três personagens revelam ser atrizes que buscam, de forma obsessiva, adaptar a vida e obra da poeta aos palcos. As discussões do que seria dramaturgicamente apropriado para a construção da peça se misturam com a interpretação de Ana, Cristina e César, três personas distintas que ganham vida pela interpretação das atrizes.
A fragmentação de Ana Cristina César em três foi feita pela própria poeta, em uma carta ao amigo Caio Fernando Abreu, segundo conta a dramaturga de “Ana Marginal”, em cartaz no galpão Escada, Michelle Ferreira. A correspondência caiu como uma luva para a criação do espetáculo, que tinha a proposta desafiadora de levar a poesia ao teatro sem tornar a apresentação um recital de poemas.
“O teatro é drama, e drama precisa de conflito entre as personagens. Trazemos uma pessoa tripartida que está tentando se juntar e fazer sentido”, diz Ferreira. Uma descrição que veste bem a poeta homenageada pela Flip, a Festa Literária de Paraty, em 2016, conhecida pelos versos intensos, aflitos e por vezes existencialistas, que vagueiam entre o autobiográfico e o ficcional.
Somado ao texto, vídeos no plano de fundo do palco mostram fotos da poetisa em diferentes fases de sua vida, junto com textos escritos de próprio punho. Uma escultura de metal com três lâmpadas acesas passeia por um trilho diante da plateia: é o navio ancorado no espaço, trecho de um poema de César.
“Ela tinha uma preocupação muito grande com a forma do livro e sua confecção. Nos interessavam seus rabiscos e caligrafia. Queria que fosse um espetáculo que brinca com o marginal”, diz o diretor, Nelson Baskerville.
Ana Cristina César, ou Ana C., como costumava assinar, nasceu no Rio de Janeiro, em 1952. Desenvolveu o prazer pela escrita logo na infância, com histórias que por vezes também ilustrava uma delas, em que uma princesa se joga no mar, é encenada na peça através de um teatro de sombras, com os desenhos feitos pela escritora quando criança.
Já adulta estudou letras, se tornou tradutora, poeta e um dos expoentes da geração mimeografo, que florescia na década de 1970, após a Tropicália. Eram escritores chamados de “marginais” por não se inserirem no circuito editorial consolidado da época, quando o AI-5 já era ferramenta de repressão da ditadura militar.
Com algumas publicações independentes e apenas um livro de poemas por uma editora comercial, “A Teus Pés”, César cometeu suicídio em 1982, aos 31 anos, atirando-se do sétimo andar do prédio onde moravam seus pais, em Copacabana.
Deixou uma série de textos em prosa, poemas, diários e cartas reunidos e publicados posteriormente. Apesar de enérgicos e considerados pop para a época, seus versos eram minuciosamente pensados do ponto de vista estrutural e literário. “A paixão que me enlouquece é aquela pela técnica, é por ela que nasce o estilo”, escreveu.
“Parece que quando você chega perto do que ela quer te entregar, ela te escapa. Quem sabe, levando para o palco, a compreensão de sua vida e obra fique mais palpável”, diz a atriz Nataly Cavalcantti, idealizadora de “Ana Marginal” e atriz que encarna Ana.
Para tal feito, Cavalcantti contatou Heloísa Teixeira, hoje membro da Acadêmia Brasileira de Letras e amiga íntima de Ana Cristina César na década de 1970.
“Ela nos contou que tinha alguma coisa reprimida na Ana. Ela precisava explodir, de certa forma. Somado ao que fomos estudando, percebemos que era algo relacionado a sua sexualidade, que ela vivia mas não com total liberdade. De alguma forma, ela se culpava pelo seu desejo por mulheres”, diz Nataly.
No palco, a sexualidade da poetisa é trabalhada através do envolvimento físico constante entre as personagens. Em determinado momento, Cristina e César iniciam um romance, levando a bate-bocas que deixam o público em dúvida se a discussão é sobre a relação amorosa ou a condução da peça.
“A obra dela é sempre um enigma, um jogo de esconde-esconde”. Para Nataly, o envolvimento com outras mulheres foi apenas um dos recortes possíveis de uma figura complexa, até misteriosa.
Heloísa Teixeira contou à atriz que César parecia estar sempre performando, seja nas cartas e poesias como nos trejeitos e roupas, e que ligava constantemente para amigos inclusive de madrugada para conversar. A angústia era um sentimento constante, atenuado pela escrita.
Em “Ana Marginal”, a busca aflitiva por algo que não se encontra foi transmitida através da obsessão da poetisa pela tradução de “Bliss”, palavra inglesa que dá nome a um conto de Katherine Mansfield.
Em sua tradução, César fez mais de 80 notas de rodapé para esmiuçar os detalhes do texto, em uma busca incessante pela palavra exata que mais parece representar a procura por outra coisa, à nível existencial.
Por fim, César traduziu, ainda que com ressalvas, “bliss” como “êxtase”. “Ela chega a escrever que êxtase é aquilo que se sente quando há envolvimento com uma mulher, que não se sente quando se está com um homem”, diz Cavalcantti.
O suicídio também é mencionado ao longo de toda a peça, mas quase como um elefante branco na sala. No ato final, as atrizes finalmente discutem a sua encenação e, aos berros, César diz que a grande poeta não deve ser lembrada pela sua morte, e, sim, pela sua escrita, que deixou a literatura cedo demais.
ANA MARGINAL
Quando Sáb. e Seg. às 20h e Dom. às 19h. Até 30 de outubro.
Onde Espaço Elevador – r. Treze de Maio, 222, São Paulo
Preço R$ 40
Classificação 12 anos
Autoria Nataly Cavalcantti e Michelle Ferreira
Elenco Nataly Cavalcantti, Bruna Brignol e Carol Gierwiastowski
Direção Nelson Baskerville
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress