CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – “Gaslighting” é um termo do vocabulário feminista para nomear a prática de manipulação em que um parceiro faz com que a mulher duvide de sua versão dos fatos e, em última instância, de si mesma. Sua efetividade se deve, ao menos em parte, à própria inconsistência da linguagem para narrar a vida e à parcialidade com que cada um o faz.
Este não é um tema qualquer. Está em pauta no noticiário, em tempos de vereditos baseados na suposta falta de credibilidade do depoimento de uma vítima de abuso sexual, e no teatro.
É o que vemos, por exemplo, na aclamação a Débora Falabella em “Prima Facie” pela trajetória de uma advogada especializada em levantar dúvidas razoáveis para inocentar acusados de crimes sexuais, até que ela precisa depor sobre uma violência sofrida sem margem para dúvidas.
Com estreia neste sábado (5) no Festival de Curitiba e temporada no CCBB-SP de 24 de abril a 8 de junho, “Nebulosa de Baco” toca nessa mesma ferida. Rosana Stavis e Helena Portela representam duas atrizes às voltas com os ensaios de uma peça na qual a filha confronta o padrasto sobre suas memórias de infância. E se depara com esforços dele em desacreditá-la.
O jogo se torna mais interessante pelo contraste entre a peça ensaiada e a relação entre as duas nos bastidores. Elas desdobram facetas da atuação, do fingir, da mentira, da verdade e da autoficção, sem estabelecer juízo moral. Tampouco, cedem a uma suposta isenção.
Marcos Damaceno, o dramaturgo e diretor, estava interessado em “relatos de histórias reais” de manipulação e abuso. Para construir seu texto, recorreu ao autor de “Assim É se lhe Parece”. “Peguei do Pirandello o embaralhamento entre o que é verdade e o que parece que é verdade; o que é real e o que é manipulado, ou falso”, diz.
“A peça é sobre enganar, convencer os outros de uma coisa que não se é. Sobre o quanto pessoas notoriamente abusivas e manipuladoras são capazes de, em reviravoltas narrativas, fazer com que se fique ao lado delas, que se acredite que são inocentes. E fazer com que quem foi abusada se sinta confusa sobre o que aconteceu”, afirma.
A questão em cena, então, torna-se a necessária separação entre o que é verdade e o que parece ser. “Em tempos de fake news, de manipulações, da elevação da mentira como virtude, [apresentamos] a importância de se defender a verdade, por mais que saibamos que dificilmente alguém consiga alcançá-la por completo. E, muito menos, ser seu dono”, diz.
Para atingir tal efeito, faz diferença certa maturidade conquistada pela Cia Stavis-Damaceno, sediada na capital paranaense há mais de duas décadas. A atração por experiências nas bordas da compreensão já se encontrava na montagem de “Psicose 4h48”, de Sarah Kane, em 2004, primeiro espetáculo de destaque a furar a bolha local.
Em 2008 veio outro, “Árvores Abatidas ou Para Luís Melo”, num diálogo com a obra de Thomas Bernhard à curitibana. A peça tratava do lugar do artista na sociedade a partir da fala ácida da personagem de Stavis.
Desde então, sobressai o preciosismo do trabalho vocal da atriz, valorizando a musicalidade do texto, o que está para além do entendimento pela via do sentido, por mais que se sustente na palavra.
Esse percurso culminou na condensação entre pensamento e música proposta em “A Aforista”, de 2023, e suas quatro indicações ao Shell, entre elas atriz e diretor.
Em “Nebulosa de Baco”, Stavis coloca-se à margem para que Helena Portela ocupe o centro da cena e trabalhe, também, um desenho de fala com “combinações de tons, ritmos, velocidades, volumes e pontuações”, conforme descreve o diretor.
Ainda assim, a veterana não deixa de exercer a função crucial de provocar a parceira sobre a relação entre uma atriz e sua personagem. Com isso, a peça indaga sobre qual a verdade da atuação e qual a verdade do sofrimento.
“Há os que, em nome de alcançar a verdade, se estapeiam, cometem autoflagelos, e chegam a exercer ou se permitir sofrer processos criativos com pitadas de violência e abusos físicos e psíquicos. Na maioria das vezes, praticados em si, por si mesmos”, afirma Damaceno.
Atenta aos limites da compreensão e da relação com o outro, a peça encara a complexidade do tema sem adotar posição cínica. “A principal frase de ‘Nebulosa de Baco’ é quando a mulher diz: Mas eu sei, eu sei o que aconteceu. A verdade está com ela. Somente com ela”, diz o autor.
NEBULOSA DE BACO
– Quando Sáb. (5), às 20h30, e dom. (6), às 19h
– Onde Guairinha – r. Quinze de Novembro, 971, Curitiba
– Preço A partir de R$ 42,50
– Classificação 18 anos
– Elenco Rosana Stavis e Helena de Jorge Portela
– Direção Marcos Damaceno
– Link: https://festivaldecuritiba.com.br/
LUCIANA ROMAGNOLLI / Folhapress