As fraudes e os desperdícios causaram perdas de até 12,7% das receitas dos planos de saúde em 2022, com prejuízos estimados entre R$ 30 e R$ 34 bilhões, segundo relatório inédito lançado nesta terça (21) pelo IESS (Instituto de Estudos da Saúde Suplementar), entidade sem fins lucrativos que estuda o setor.
O setor vive hoje um cenário de contrastes. Registra a melhor marca em relação ao número de beneficiários, quase 51 milhões (26% da população brasileira), mas amarga prejuízos que levam ao aumento dos custos operacionais e das mensalidades, o que tem gerado alta nas reclamações.
Existem hoje 679 operadoras ativas no país. Em 2022, elas tiveram um faturamento de R$ 270 bilhões, com uma sinistralidade média de 89% –em alguns casos, acima de 100%, segundo o relatório.
A análise, feita pela empresa de consultoria EY (Ernst & Young), levou em conta dados financeiros dos planos de saúde em 2022, informações sobre fraudes no setor, além de entrevistas e questionários que envolveram 14 operadoras, especialistas jurídicos, de auditoria médica, empresas de tecnologia e instituições de articulação da área.
Segundo José Cechin, superintendente-executivo do IESS, houve uma mudança no modelo de fraudes que afetam o setor. No passado, elas incidiam mais nos atendimentos assistenciais, como ocorreu há oito anos com a chamada “máfia das próteses”, criada para superfaturar a compra de materiais médicos.
No esquema, empresas pagavam propina a médicos e hospitais com a intenção de influenciá-los a usar seus produtos em cirurgias, em detrimento de outros mais baratos e/ou mais adequados aos pacientes.
Já hoje as condutas criminosas estão mais concentradas em atos administrativos, como as fraudes em pedidos de reembolso e até a criação de CNPJs para esse fim. A prática envolve empregados fictícios, para quem o esquema fraudulento gera um contrato com o plano de saúde de uma operadora em situação regular.
“Criam-se atendimentos fictícios para buscar o reembolso sem nunca ter havido uma prestação de serviços real. Envolve uma verdadeira quadrilha, uma indústria de fraudadores”, afirma Cechin.
No início deste mês, a Polícia Civil de São Paulo deflagrou uma megaoperação com o objetivo de apurar empresas suspeitas de atuar no esquema de reembolsos médicos fraudulentos. Em apenas um dos casos apurados, cada funcionário chegava a fazer uma média superior a cem pedidos de reembolso por mês.
Dados da Fenasaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), que representa 13 grupos de seguradoras de saúde, mostram que de 2019 a 2022 o volume total gasto pelas operadoras com reembolsos saltou de R$ 6 bilhões para R$ 11,4 bilhões, um aumento de 90%.
No mesmo período, o aumento das despesas assistenciais com pagamento de médicos, clínicas, laboratórios, hospitais, fornecedores de materiais e medicamentos foi de 20% (de R$ 171,8 bilhões para R$ 206,5 bilhões).
Na Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), o volume total de reembolsos passou de R$ 6 bilhões, em 2019, para R$ 10,9 bilhões em 2022. Se no ano passado esses reembolsos tivessem acompanhado a variação geral das despesas assistenciais, os gastos teriam sido de R$ 7,2 bilhões, segundo a entidade.
As investigações sobre as fraudes ganharam força em 2022 a partir de uma notícia-crime apresentada pela Fenasaúde ao Ministério Público de São Paulo sobre uma rede de empresas de fachada criada com o intuito de fazer pedidos de reembolsos fraudulentos, que somaram cerca de R$ 40 milhões.
Vera Valente, diretora-executiva da Fenasaúde, lembra que no ano passado o setor teve quase R$ 12 bilhões de prejuízos operacionais. “Não podemos mais lidar com essa situação. Nossas operadoras já entraram com mais de 1.700 notícias-crimes, estamos enfrentando e combatendo as fraudes, mas os beneficiários são parte muito importante nesse processo.”
A entidade mantém uma campanha permanente alertando sobre as fraudes no setor, com cartilhas e vídeos informativos sobre os mais diversos tipos de irregularidade.
Segundo Cássio Ide Alves, superintendente-executivo da Abramge, ainda não é possível saber se as campanhas educativas e as ações policiais e judiciais surtiram algum efeito na redução das fraudes neste ano. “Esses fraudadores se adaptam muito rapidamente, mudam o modus operandi.”
Para Cechin, a exemplo do que foi feito no enfrentamento da máfia das próteses, em que os planos aperfeiçoaram o sistema de controle, centralizaram compras e passaram a comprar materiais e remédios muito caros diretamente da indústria, é preciso que a gestão das operadoras invista em tecnologias para coibir as fraudes atuais. Essa é uma das recomendações do relatório.
“Hoje, com a inteligência artificial, você consegue não só levantar os casos suspeitos e investigá-los, mas também dificultar que as fraudes sejam cometidas.” Por exemplo, checando antes da autorização de um procedimento médico se os itens solicitados são de fato pertinentes para aquele caso.
Alves, da Abramge, diz que a entidade tem orientado os associados a fazer adaptações internas e a capacitar os recursos humanos para detectar as fraudes. “Essas quadrilhas se utilizam da inteligência artificial, da internet, e a gente também precisa agregar esses instrumentos no nosso dia a dia.”
O relatório também defende que haja mudança na legislação para que essas condutas fraudulentas na saúde suplementar sejam consideradas crimes, o que não ocorre atualmente. “Hoje, esses casos precisam ser enquadrados em outros tipos de crime que estão tipificados no Código Penal”, diz Cechin.
Há projetos de lei em tramitação nesse sentido. Por exemplo, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara há um que altera o art. 171 do Código Penal, aumentando em um terço a pena para quem cometer fraude contra entidades de direito público ou privado que operem planos de assistência à saúde.
“Se a gente não tiver uma evolução normativa, regulatória e de legislação, a gente vai ficar correndo atrás do rabo. Tudo o que foi sugerido na CPI da máfia das próteses nunca saiu do papel. Agora a gente tem um multiplicador [das fraudes] que é as redes sociais”, afirma Cássio Alves.
Tipos de fraude no setor de saúde suplementar
Beneficiários: ocultação de condição pré-existente, fornecimento de dados de acesso a terceiros, reembolso duplicado , empréstimo da carteirinha para não-beneficiário; falsificação de informações e/ou documentos Prestadores de serviço: adulteração de procedimento, superutilização, reembolso sem desembolso, falsificação de laudos de exames, atendimento falso, fracionamento de recibo, boleto falso, recebimento de propina, enquadramento forçado em critérios de cirurgias, falso atendimento público Demais agentes: judicialização premeditada, adulteração de cadastro de beneficiário, prestador fantasma, falso médico ou dentista
Problemas do setor que facilitam as fraudes e os desperdícios
Operadoras se comunicam pouco com os beneficiários, que acabam tendo informações limitadas sobre como funciona o serviço Falta de visão global do paciente, com repetição de exames, diagnósticos incorretos e falha na organização dos atendimentos para aproveitamento otimizado Baixa utilização no uso de tecnologias de ciência de dados e falta de profissionais especializados Relações com prestadores de serviços são frequentemente embasadas em desconfiança e pouca parceria e espaço para negociação; há falta de transparência na comunicação entre as partes Contratos antigos, negociações ultrapassadas e pouca clareza em cláusulas deixam margem para abusos e alta onerosidade às operadoras Dificuldade nas investigações de fraudes, que dependem do apoio das delegacias, mas concorrem com inúmeras outras atividades criminosas. Em outros países, há delegacias especializadas em fraude contra a saúde Ausência de legislação sobre fraude na saúde. Os processos seguem caminhos indiretos de criminalização, com alegação de estelionato e outros crimes
CLÁUDIA COLLUCCI / Folhapress