RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A Polícia Federal reconheceu em seu relatório final lacunas nas provas de corroboração indicadas pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), como suficientes para tornar réus os irmãos Domingos e Chiquinho Brazão sob acusação de mandar matar a vereadora Marielle Franco (PSOL).
O ministro entendeu que os indícios descritos para tentar confirmar a delação do ex-PM Ronnie Lessa, executor do crime, eram suficientes para dar coerência à denúncia apresentada pela PGR (Procuradoria-Geral da República). A interpretação de Moraes, porém, amplia as afirmações feitas pela própria PF sobre o planejamento do crime.
Os cinco ministros da Primeira Turma do STF decidiram nesta terça-feira (18), por unanimidade, tornar réus os irmãos Brazão, o delegado Rivaldo Barbosa e dois PMs sob acusação de planejarem a morte da vereadora, cuja ação também levou à morte do motorista Anderson Gomes, em março de 2018.
A denúncia tem como base principal a delação de Lessa. O PF descreveu em seu relatório tentativas frustradas de ratificar a colaboração do ex-PM com provas independentes. Ela atribui as dificuldades aos seis anos já passados do crime. Aponta também como empecilho o envolvimento de policiais capazes de encobrir rastros e dificultar as investigações.
Os elementos de corroboração são uma exigência legal para a instauração de ação penal desde a aprovação do pacote anticrime, em 2019. Foi uma reação aos alegados abusos da Operação Lava Jato.
Em seu voto escrito, Moraes elaborou duas tabelas indicando as acusações feitas ao grupo e, numa coluna seguinte, a localização dos elementos de corroboração nos autos do processo. A primeira planilha se refere ao crime de organização criminosa para a prática de grilagem com apoio de milícias, e a segunda, ao homicídio de Marielle.
A tabela sobre o planejamento do assassinato tem 16 itens, dos quais 5 teriam envolvimento dos irmãos Brazão e de Rivaldo.
Numa das linhas, Moraes indica a localização do “documento comprovando o encontro entre ‘Macalé’ [PM Edmilson de Oliveira], Ronnie Lessa e irmãos Brazão, nas imediações do Hotel Transamérica”. Ela faz referência a três páginas do relatório da PF.
A primeira página indicada descreve a narrativa de Lessa, segundo a qual ele teria se encontrado numa lanchonete com Macalé, intermediário do contato com os Brazão. De lá, a dupla foi, segundo o delator, para a reunião com os irmãos próximo ao hotel Transamérica.
A PF diz que os registros de antenas dos celulares de Lessa e Macalé indicam que os encontros na referida lanchonete eram recorrentes. Mas afirma que “não foram resgatados registros anteriores a 2018” -as duas primeiras reuniões ocorreram em 2017.
Os registros, porém, podem até contrariar o relato de Lessa.
O ex-PM afirma que teve um terceiro encontro com os Brazão, seguindo a mesma dinâmica, em abril de 2018, após o crime. Os dados mostram que os celulares de Lessa e Macalé compartilharam a antena da área da lanchonete uma única vez após o homicídio, em 12 de abril de 2018 entre 11h e 12h. O delator, porém, afirmou que todos os três encontros foram à noite.
A segunda página indicada não tem relação com o suposto encontro. A terceira contém apenas uma reprodução do depoimento de Lessa.
A tabela também indica páginas do processo em que haveria “documento demonstrativo de que Rivaldo prestou auxílio intelectual para o homicídio, bem como que recebia remuneração mensal de milicianos”.
A página do relatório da PF indicada faz referência a uma investigação não concluída do Ministério Público do Rio de Janeiro que apura o pagamento de propina de contraventores a Rivaldo para não esclarecer homicídios relacionados à chamada “guerra do jogo do bicho”.
A investigação, porém, não contém qualquer evidência de ligação entre Rivaldo e os irmãos Brazão, que nem sequer são citados no procedimento.
Moraes também cita na tabela “documento que comprova entrega, por ‘Macalé’, de uma submetralhadora alemã para Ronnie Lessa”. Trata-se da mesma página do relatório da PF que descreve a fala de Lessa sobre os encontros com Brazão.
Em outro trecho do relatório, a PF descreve tentativas de confirmar o relato de Lessa sobre a entrega da submetralhadora por Macalé. Os investigadores foram ao motel abandonado em que o ex-PM disse ter testado a arma. “Tal diligência restou frustrada”, diz o relatório, porque o local foi submetido a limpeza com trator anos atrás.
A PF também buscou informações sobre todas as submetralhadoras HK MP5, usada no crime, sob o poder das forças de segurança no Rio de Janeiro. “Chegou-se à conclusão que não foi possível identificar a arma empregada na ação”, diz o documento.
O ministro também menciona a infiltração de um miliciano no PSOL e de que ele “informou Domingos Brazão sobre as reuniões comunitárias de Marielle, em Jacarepaguá, visando à regularização fundiária”.
A filiação ao PSOL de Laerte Silva de Lima, condenado sob acusação de integrar a milícia de Rio das Pedras, foi confirmada por dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e já havia sido revelada em 2020 pela revista Veja. As páginas indicadas, porém, não trazem elementos -à exceção do depoimento de Lessa- que indiquem a atuação de Brazão na filiação, bem como o repasse de informações sobre a atuação de Marielle.
Os demais itens da tabela sobre o homicídio se referem à atuação dos Brazão na grilagem de terras, suposta motivação para o assassinato, e preparativos feitos diretamente por Lessa.
Durante o julgamento, Moraes disse que os indícios eram suficientes para instaurar a ação penal. Afirmou, porém, que caberá ao Ministério Público ampliar a comprovação em relação às acusações para que haja a condenação dos acusados.
“Há 17 tópicos específicos que, comparando com a delação [de Lessa], dão sustentáculo para que o Ministério Público possa trazer ao STF a denúncia e tenha a possibilidade, com o recebimento da denúncia, comprovar que esses elementos indiciários podem levar à condenação. Se não houver, teremos a absolvição, como é de praxe”, afirmou o ministro.
O ministro Cristiano Zanin também afirmou que o nível de provas exigido para o recebimento da denúncia é distinto do necessário para a condenação.
“Neste momento não estamos analisando provas para fins de condenação, mas sim para instauração de ação penal na qual a Procuradoria-Geral da República terá de produzir prova de culpa”, disse ele.
“É justamente essa a oportunidade de ouvir e confrontar esse colaborador de forma ampla. De poder inclusive demonstrar eventuais inconsistências ou até mesmo uma versão mentirosa que tenha sido por ele contada. Mas isso se dará durante a instrução [da ação penal].”
A ministra Carmen Lúcia, por sua vez, afirmou que o conjunto apresentado pela PGR não contêm provas, mas “descrições de fato que podem, em tese, constituir delito a ser punido na forma da legislação vigente”.
“São indícios que indicam a possibilidade de ter havido tudo o que foi descrito de maneira clara e objetiva. Sem provas, porque as provas se dão na instrução. Agora é apenas o recebimento. Um cenário que tende a ser suficiente como justa causa para instauração de uma denúncia.”
A delação de Lessa foi alvo de ataque das defesas na tribuna antes do voto.
O advogado Roberto Brzezinski Neto, que defende Domingos Brazão, criticou a falta de corroboração das declarações de Lessa em sua colaboração.
“Não se tem prova da entrega e devolução da arma. Quem acredita que um sicário profissional iria pedir a arma para o mandante e aceitar a devolução da arma ao mandante. E o risco que ele não correria dessa arma ser descoberta?”
O advogado Marcelo Ferreira, que representa Rivaldo, afirmou que a única nova informação produzida pela PF após a investigação da Polícia Civil sobre o homicídio foi a “discutida e controvertida colaboração premiada de Ronnie Lessa, que muito mais confundiu que esclareceu”.
“Ronnie Lessa disse exatamente o que a PF queria ouvir. Ele conduziu a Polícia Federal como um boiadeiro conduz a boiada”, afirmou o advogado de Rivaldo.
ITALO NOGUEIRA / Folhapress