BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – As aulas sobre democracia proposta pela PGR (Procuradoria-Geral da República) como parte dos acordos com réus que incitaram os ataques golpistas de 8 de janeiro já foram gravadas e aguardam avaliação do ministro Alexandre de Moraes, mas podem ficar restritas aos acusados, sem ampla divulgação do seu conteúdo.
Nos chamados ANPPs (acordos de não persecução penal), os réus confessam os seus crimes e se comprometem a pagar multas e a cumprir obrigações. Em troca, as ações penais ficam suspensas e só são retomadas em caso de descumprimento dos termos acordados.
A PGR já enviou para a validação do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), 15 propostas de acordos com réus do 8 de janeiro. Além das multas, eles se comprometem a prestar serviços à comunidade, não manter redes sociais abertas e a participar de um curso sobre democracia.
Ainda é incerto, porém, se mesmo após a validação o conteúdo integral desse curso será aberto e transparente para o público, e não só para os réus e magistrados dos casos.
As aulas já foram filmadas, mas a própria PGR afirmou à Folha que não sabe se o conteúdo será aberto e que “a ideia inicial é que apenas o juiz que irá acompanhar a execução e a pessoa que firmou o acordo tenham acesso”.
O curso, chamado “Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado”, tem duração de 12 horas em vídeo, dividido em quatro módulos de três horas.
Os réus deverão assistir às aulas em ambiente oficial, com controle de frequência e fiscalização realizada por agente do Poder Judiciário e com proibição da utilização de celular durante a projeção.
Os módulos são ministrados por procuradores do Ministério Público. O primeiro trata de democracia, o segundo e o terceiro de Estado de Direito e o quarto de golpe de Estado.
A Folha de S.Paulo solicitou a íntegra dos cursos à PGR, que disse que as informações disponíveis sobre os cursos são apenas as que estão em notas publicadas no site do órgão.
A possibilidade de que não haja divulgação ampla dos cursos que serão aplicados nos réus divide especialistas consultados pela reportagem.
Sob reserva, diferentes procuradores do Ministério Público Federal dizem que não veem motivo para que não haja publicização dos cursos e que a possibilidade de restrição ao seu conteúdo causa estranheza.
A maior parte dos advogados consultados pela reportagem também defende que eles não sejam reservados.
“Considero pouco o exigido pelo MP no ANPP. Ficou fácil participar de tentativa de golpe. O pior é o curso secreto. Quer dizer que a sociedade não pode saber o que o réu vai assistir sobre democracia? Não fosse patético, seria engraçado”, diz Lenio Streck, advogado e procurador de Justiça aposentado.
Especialista em direito penal econômico, André Damiani afirma que o ANPP pode prever uma cláusula de sigilo em relação a terceiro, mas “neste caso, causa estranheza que material educativo de cunho preferencialmente pedagógico” possa ser confidencial.
Ele compara com um material educativo voltado à prevenção dos crimes no trânsito, no qual não faz sentido ser restrito. “Melhor mesmo é fazer valer o regramento do Estado democrático de Direito, cuja validade, aliás, deve constituir pilar do próprio curso em debate: a publicidade é sempre regra, e não a exceção”, afirma.
O advogado especializado em direito penal Daniel Berger diz que “no mínimo, atiça a curiosidade do público sobre o que este curso estaria falando a respeito dos pilares democráticos”. “Mas, efetivamente, a proibição para que seja divulgado não há, salvo a própria vontade dos acordantes”, afirma.
Por outro lado, Gustavo Justino de Oliveira, professor da USP e do IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) Brasília afirma que faz sentido a restrição do acesso ao curso, por seu caráter personalizado.
“Esse curso é customizado e provavelmente não é feito para todos. Embora tenha um conteúdo programático e tudo mais, ele é voltado a esses acusados, especificamente. Como eles têm que assistir presencialmente, não é um curso de acesso irrestrito para todas as pessoas, tem a ver com as condutas criminais que foram praticados por esses réus”, diz Oliveira.
“Nesse sentido, não entendo que esse curso tenha que ser publicizado. Não há essa obrigação. Não é um curso genérico, é um curso específico. Não é um curso de uma plataforma do Ministério Público Federal que pode ser acessado por todos. Deve ser bastante profundo.”
Os acordos do Ministério Público Federal foram firmados pelo Grupo Estratégico de Combate aos Atos Antidemocráticos, coordenado pelo subprocurador-geral da República Carlos Frederico Santos.
Entre os denunciados pela PGR pelo 8 de janeiro, 1.125 tiveram as ações suspensas para que seja analisada a situação de cada um e haja definição se eles preenchem requisitos para o fechamento de acordos de não persecução.
Como condição para fechar os acordos, todos os réus têm que confessar a prática dos crimes de incitação e associação criminosa, previstos no Código Penal.
Carlos Frederico Santos tem dito que a inclusão do curso nos acordos foi inspirada em uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos referente a um caso da Guerrilha do Araguaia, que impôs ao Brasil, como garantia de não repetição da prática investigada, a implementação de programa de educação em direitos humanos permanente dentro das Forças Armadas.
JOSÉ MARQUES / Folhapress