SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Policiais militares envolvidos em ações com mortes na Baixada Santista de julho de 2023 a fevereiro de 2024 levaram diversas horas para comunicar as ocorrências à Polícia Civil –apesar da uma resolução do governo estadual determinar que isso deve ser feito imediatamente.
A demora, segundo agentes e um perito ouvidos pela reportagem, causa em grave prejuízo para a perícia e dificulta o andamento das investigações. Pode ainda acarretar em fraude processual, crime previsto em lei.
A Folha de S.Paulo analisou 46 boletins de ocorrência, que mostram uma grande variação entre o tempo de uma ocorrência e a comunicação ao órgão responsável pela investigação. Num dos casos, em 28 de janeiro, policiais militares demoraram 12 horas e 59 minutos para avisar a Polícia Civil. O boletim marca a ocorrência às 9h40 e a comunicação às 22h39. Esse é o maior intervalo encontrado nos registros.
Todos os casos analisados aconteceram durante o período no qual foram realizadas as operações Escudo e Verão na Baixada Santista. Ao menos 84 pessoas foram mortas por policiais militares durante essas ações.
Como a Folha de S.Paulo mostrou, o número de pessoas mortas por PMs em serviço no estado de São Paulo aumentou 138% no primeiro trimestre do ano, na comparação com o mesmo período do ano passado.
A demora na comunicação da ocorrência de 28 de janeiro deste ano, na qual dois homens morreram, contrasta com a rapidez no aviso da morte do soldado Patrick Bastos Reis, 30, da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), caso que deu início à Operação Escudo.
Segundo o boletim de ocorrência, o tiro que acertou o PM durante um patrulhamento em uma favela em Guarujá ocorreu por volta das 22h30 do dia 27 de julho do ano passado. Às 23h05, policiais civis já tinham sido informados do fato.
Um delegado com mais de duas décadas de experiência na apuração em casos de morte decorrente de intervenção policial disse que não há uma determinação de tempo para que a comunicação seja feita, mas que o tolerável é que isso aconteça em até quatro horas. Para um outro delegado, um tempo razoável para aviso deve ser de no máximo uma hora e meia.
Resolução da SSP (Secretaria da Segurança Pública) determina que em caso de mortes por intervenção policial, as instituições envolvidas na apuração devem ser avisadas imediatamente. A lista de órgãos que devem ser comunicados inclui os centros de operações policiais, o delegado responsável pela área, a Delegacia-Geral da Polícia Civil, a corregedoria, a Polícia Técnico-Científica e o Ministério Público.
Em nota, a pasta da gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos) afirmou que as polícias atuam visando otimizar, sempre que possível, a comunicação de uma ocorrência e os trabalhos de polícia judiciária.
“No entanto, diversos fatores podem influenciar neste tempo, como as circunstâncias do fato, o local, que pode ser de difícil acesso, ou mesmo procedimentos como exames periciais, espera de carro do IML e exames para identificação de impressões digitais”.
O Ministério Público disse analisar cada uma das ocorrências de maneira minuciosa.
Homem foi morto ao buscar carteira na cintura
A ocorrência que levou quase 13 horas para ser comunicada ocorreu na periferia de Guarujá, dois dias após o assassinato de um policial que voltava para casa pela rodovia Anchieta. As vítimas eram Ademir Maurício de Souza, 44, e Paulo Sergio do Carmo, 56.
No mesmo dia em que foi morto, Ademir havia dito aos filhos que iria até a casa de um cliente para fazer o orçamento de um serviço, segundo o relato de um parente à reportagem. Ele planejava passar numa mercearia na volta, comprar três cervejas e pedir uma pizza para o jantar.
Segundo a família, Ademir era pintor e montador de móveis, além de dependente químico –lutava há anos contra o vício em cocaína. Estaria no local onde morreu para comprar droga, mas a família garante que ele nunca vendeu entorpecentes nem tinha arma de fogo.
Os próprios policiais reconheceram em depoimento que atiraram em Ademir quando ele “tirou um objeto de sua cintura” e que, quando ele já estava caído no chão, verificaram que era uma carteira. Em entrevista à Folha de S.Paulo, um familiar confirmou que ele costumava guardar a carteira presa ao cordão da bermuda.
Os PMs estavam na comunidade da Vila Edna, conforme disseram à Polícia Civil, para procurar suspeitos de terem entrado em confronto com outra equipe da corporação na véspera.
No boletim de ocorrência, eles contam que estavam perseguindo um homem que havia fugido ao avistar a viatura da PM.
Eles afirmaram que, ao chegar próximo à rua São Pedro, um dos PMs avistou três homens lado a lado e deu voz de prisão a todos. Em seguida, um deles teria disparado em direção aos policiais e fugido. Os outros dois foram atingidos –Ademir morreu com um tiro na cabeça.
A família do pintor nega essa versão. Segundo um parente, moradores da rua contaram que a polícia chegou ao local atirando, sem dar voz de prisão, e que não havia ninguém armado.
Os PMs afirmaram que perseguiram um suspeito em seguida e, quando voltaram ao local onde os dois homens estavam feridos, encontraram uma mochila e uma sacola preta ao lado dos corpos. Na sacola, disseram os policiais, havia 12 frascos de lança-perfume, e na mochila um revólver calibre 38 com três munições, e uma nota de R$ 20.
A arma e os frascos de lança-perfume foram atribuídos a Ademir no boletim de ocorrência, mas a família também contesta essa informação.
Os policiais também afirmaram, em depoimento, que os indivíduos foram socorridos pela Polícia Militar, mas que não resistiram aos ferimentos.
Um vídeo do atendimento obtido pela reportagem mostra, porém, que os agentes não tocam nem prestam qualquer socorro a Ademir, que estava caído no chão sem se mexer, em cima de uma poça de sangue. Nas imagens, os policiais socorrem apenas Carmo.
A morte da dupla traz, ainda, um erro no boletim de ocorrência. O local do fato, onde se deve constar o ponto onde aconteceu o caso, tem como o endereço a sede da delegacia de Guarujá.
Sobre isso, a SSP disse que a mudança de endereço e horário após novas edições do boletim de ocorrência está sendo verificado junto ao Departamento de Inteligência da Polícia Civil.
Seis casos levaram mais de 4h para serem comunicados
Entre os dias 28 de janeiro e 27 de fevereiro, quando foi desencadeada novas fases da Operação Verão, a segunda comunicação de óbito mais demorada levou seis horas. Ela ocorreu no dia 3 de fevereiro em Santos.
O homicídio aconteceu horas depois do assassinato do soldado Samuel Wesley Cosmo, 35, da Rota. Entre a ocorrência e a comunicação da morte do PM se passaram 6h29.
Em 27 de fevereiro a morte de cinco homens em São Vicente levou 4h23 para ser comunicada à Polícia Civil. A ocorrência com o menor tempo foi registrada no dia 9 de fevereiro em Santos. Ela levou 1h36 entre o fato e o aviso.
Durante a Operação Escudo, a reportagem teve a acesso a 24 boletins de ocorrência, que juntos registraram 25 das 28 mortes ocorridas durante a ação. Seis destes registros demoraram mais de 4h, sendo que um deles demorou 5h20. O caso mais rápido levou 1h22 para ser avisado.
“Não existe uma norma, existe o bom senso”, disse Cassio Tyone, membro do Fórum de Segurança Pública e perito aposentado da Polícia Civil do Distrito Federal. “A gente começa a se questionar quais as justificativas para tamanha demora. Há questões operacionais que podem atrasar um pouco. A gente tem visto muitas cenas de crimes sendo adulteradas, inclusive com a possibilidade de caracterizar fraude processual.”
PAULO EDUARDO DIAS E TULIO KRUSE / Folhapress