Poço vira farra em reduto de emendas, e cidade de político supera estados inteiros

ALAGOAS, E SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Estrela de Alagoas é um município de pouco mais de 15 mil habitantes que não chega a 0,5% da população de Alagoas. Na hora de perfurar poços, porém, o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas) parece se preocupar bastante com a pequena cidade.

Ali está 1 de 5 cinco poços perfurados em todo o estado pelo departamento desde 2020, segundo dados do governo federal obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação. Foram 80 no período só nessa cidade.

Em Petrolina (PE), a instalação de poços também chama a atenção, uma vez que sozinho o município recebeu mais do que os estados de Alagoas e do Piauí somados, esses por meio da também federal Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba).

Estrela de Alagoas e Petrolina são redutos de líderes do centrão.

Estrela de Alagoas é área de Arlindo Garrote, atual coordenador estadual do Dnocs, ex-prefeito da cidade e cotado para concorrer nas eleições de 2024. Ele atua no órgão sob indicação política do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL).

Já Petrolina é berço político da família Bezerra Coelho, que hoje tem o deputado Fernando Filho (União Brasil-PE) como o seu principal representante em exercício de mandato.

A concentração de poços em redutos políticos é mais uma consequência tanto do loteamento de órgãos federais como do direcionamento das emendas parlamentares para áreas indicadas por deputados e senadores, e não necessariamente as de maior necessidade.

Na semana passada, a Folha de S.Paulo mostrou situação semelhante com entregas de caixas-d’água e cisternas. Enquanto pessoas andam horas para pegar água em regiões de baixa influência de emendas, em cidades com padrinhos políticos fortes os equipamentos apodrecem em depósitos.

A perfuração de poços foi adotada como uma grande vitrine política na gestão Jair Bolsonaro (PL), e o governo Lula (PT) manteve boa parte dos chefes dos órgãos federais que cuidam do tema.

Com a explosão das emendas, tanto a Codevasf quanto o Dnocs fizeram decolar o número de poços instalados e perfurados nos últimos anos, saindo de 642, em 2019, para 1.847, em 2022, um aumento de 188%.

No caso de Alagoas, os chefes da estatal e do órgão voltados ao combate à seca são apadrinhados de Lira. A Codevasf é comandada por Joãozinho Pereira, primo do presidente da Câmara.

Joãozinho é ex-prefeito de Teotônio Vilela, cidade alagoana onde a Codevasf instalou mais poços desde 2021, um total de 23, de acordo com dados do governo. A segunda colocada nessa lista é Junqueiro, cidade onde Joãozinho pode concorrer a prefeito em 2024.

Teotônio Vilela e Junqueiro, por exemplo, não integram a lista de municípios classificados, em estudo da Embrapa Territorial, como de alta prioridade para cisternas e outras tecnologias de acesso à água.

Já Estrela de Alagoas, a “capital dos poços” em Alagoas, vive um problema grave de escassez hídrica, mas foi privilegiada em relação a diferentes outros municípios do semiárido que não receberam nenhum poço nos últimos anos nem da Codevasf nem do Dnocs.

A reportagem percorreu uma região do município onde é possível encontrar uma perfuração atrás da outra. “Ninguém nunca viu uma riqueza que nós estamos vendo aqui não”, disse o agricultor Ailton Tenório, 58, com a enxada na mão. “Aqui foi furado, mais ou menos, de 15 a 18 poços.”

Segundo os moradores, a abundância de poços ali tem nome e sobrenome: Arlindo Garrote, ex-prefeito da cidade e coordenador estadual do Dnocs.

Arlindo, como é conhecido, nomeia os responsáveis em suas redes sociais.

“Diversos municípios de Alagoas têm recebido a perfuração de poços artesianos do Dnocs através de emendas, onde agradeço a atenção do deputado federal Arthur Lira e da deputada estadual Ângela Garrote [mãe de Arlindo], proporcionando tranquilidade e alegria para aqueles que mais precisam de água em plena estação do verão.”

Embora seja alardeada nas redes sociais dos políticos, a política de perfuração de poços nem sempre resolve o problema.

Em muitos casos, os poços ficam secos. Em outros, sem um sistema de dessalinização, a água salobra, de aparência turva, tem pouca ou nenhuma serventia para a população.

É o caso de um dos poços instalados na cidade de Estrela, que, segundo moradores, não serve nem mesmo para matar a sede de animais. “Infelizmente, o poço está só servindo de enfeite porque ninguém está usufruindo de nada. A água sai muito salgada”, diz o agricultor Ericle Santos, 24.

As instalações de poços não raro rendem imagens impactantes nas redes, que mostram sondas perfuratrizes trabalhando até o surgimento da água em comunidades afetadas pela seca. Geralmente, as cenas são acompanhadas de agradecimentos a políticos como Lira.

Mas não é apenas o presidente da Câmara que surfa na onda dos poços. O deputado federal Fernando Filho, por exemplo, usa com frequência as redes sociais para mostrar fotos e vídeos de instalações feitas sob seu apadrinhamento, principalmente por meio da Codevasf.

Em uma das postagens mais recentes, de agosto, ele escreveu: “Coisa boa é começar a semana com essa vista aérea do interior de Petrolina para acompanharmos cada detalhe do seu desenvolvimento! Olha só esse poço com energia solar no Sítio Tanque, distrito de Pau de Ferro. Esta conquista significativa nos enche de orgulho e satisfação”.

Em outra postagem, de 2021, ele citou a perfuração de 50 poços em Petrolina.

Pernambuco é o estado com mais poços instalados pela Codevasf, em um total de 1.222 de 2019 a 2023. Petrolina, reduto do deputado do clã Bezerra Coelho, recebeu 141 poços da Codevasf, o que supera a marca de perfurações em estados inteiros como Alagoas (95), Piauí (42) e Rio Grande do Norte (109) pela estatal.

Os poços, algumas vezes, são feitos pelo governo até em propriedades particulares, com a condição de que vizinhos possam usar. Segundo relatos ouvidos pela reportagem, quem mora nos arredores acaba não utilizando esses equipamentos com frequência.

A reportagem esteve em uma propriedade que recebeu um poço do Dnocs, em Canapi, no sertão de Alagoas. A instalação do equipamento foi inaugurada em rede social pela prefeitura local como “parceria” com Arthur Lira.

Ali, em setembro, nem mesmo os moradores da propriedade usufruíam do equipamento devido a falhas na bomba nos últimos tempos. “Parou de funcionar. A bomba zoa um pouquinho, só que ela não joga água”, diz Ludmila Turisheva, 30.

Os números de poços instalados nos últimos anos seriam ainda maiores não fossem algumas licitações barradas. O TCU (Tribunal de Contas da União), por exemplo, vetou a execução de serviços em licitação suspeita do Dnocs de 2021 para instalação de 1.710 poços profundos no semiárido.

Auditores do tribunal inicialmente listaram indícios de uma série de irregularidades na concorrência pública, entre elas duplicidade de serviços, superdimensionamento de materiais e equipamentos e sobrepreço nos serviços de maior relevância.

Governo diz não interferir no destinado das emendas

Em nota, o Dnocs afirmou que as perfurações de poços são realizadas “por meio de emendas parlamentares, que são destinadas ao estado e município solicitado pelo parlamentar responsável pela emenda, sem interferência do governo federal”, e seguem a lei.

Arlindo Garrote, por email, afirmou que os poços perfurados seguem critérios técnicos e que o “trabalho é realizado em prefeituras ou associações que solicitam o serviço, não havendo qualquer tipo de direcionamento político”.

Ele afirmou também que a quantidade de poços perfurados não significa que a totalidade é produtiva. Citou como exemplo Canapi, onde, de 19 poços perfurados, 9 foram classificados como secos e 10 como de baixa vazão.

Quanto à auditoria do TCU, o Dnocs relatou que tem cumprido as orientações do tribunal de contas.

A Codevasf afirmou que “realizou perfuração de poços em 40 municípios alagoanos no período, localizados em diferentes regiões do estado -principalmente nas áreas de Alto, Médio e Baixo Sertão”. A conta, porém, inclui poços instalados, não instalados, secos e improdutivos -diferentemente da usada pela reportagem, apenas com os primeiros.

A companhia também afirmou em nota que as emendas são usadas para promover o desenvolvimento regional e a redução de desigualdades, e sua aplicação “é bastante heterogênea entre os estados que integram a área de atuação da companhia”.

A reportagem procurou Joãozinho Pereira via assessoria da estatal, mas a resposta não trazia menção a uma declaração específica do superintendente.

Procurados pela Folha de S.Paulo por meio de suas assessorias, os deputados Fernando Filho e Arthur Lira não se manifestaram.

ARTUR RODRIGUES E FLÁVIO FERREIRA / Folhapress

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