SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 2004, o apresentador de rádio e TV americano Adam Curry pôs no ar um programa semelhante a uma atração radiofônica, mas veiculado por dispositivos digitais. No mesmo ano, o jornalista britânico Ben Hammersley cunhou o termo podcast –uma junção de iPod, o hoje extinto tocador de música digital da Apple, com broadcast, transmissão ou radiodifusão em inglês.
Ao completar 20 anos neste 2024, o chamado podcasting parece experimentar, sobretudo no Brasil, desafios semelhantes aos das dores do crescimento.
Depois da grande euforia no país com o formato, entre meados e final da década passada, e de novos picos de interesse durante a pandemia, o mercado nacional de podcasts vive um refluxo? Estaria em risco de decadência? Ou, pelo contrário, a fase seguinte ao boom é de consolidação e fortalecimento?
Dois movimentos das big techs em relação aos podcasts acenderam um sinal de alerta quanto ao vigor do formato: o anúncio do fim do Google podcasts, o tocador criado em 2018 pelo gigante americano, que será extinto em abril, e o recuo e redefinição de estratégia do Spotify.
Depois de torrar milhões de dólares para produzir conteúdo próprio, comprando empresas e criando originais caríssimos de estrelas como os casais Michelle/Barack Obama e Meghan Markle/príncipe Harry e Kim Kardashian, o Spotify –líder mundial em streaming de áudio– pisou no freio diante de seguidos prejuízos e chiadeira de investidores.
Calcula-se que a empresa sueca tenha gastado pelo menos US$ 1 bilhão (R$ 5 bilhões) nos últimos anos para se tornar uma potência global nos podcasts, valor que incluiu a aquisição de grandes companhias do setor, como as produtoras Gimlet e Parcast e a plataforma Anchor, e a contratação de programas exclusivos com celebridades.
Diante do retorno aquém do esperado, a empresa diminuiu investimentos, encerrou contratos com Harry e Meghan e com o casal Obama e fez demissões em massa.
Manteve, contudo, sua contratação mais cara e controversa, o ex-comediante e ex-comentarista de lutas de MMA Joe Rogan, cujo podcast é provavelmente o mais ouvido do mundo –em que pese o perfil preconceituoso do apresentador (ou quem sabe por isso mesmo). The Joe Rogan Experience, nascido no final de 2009, serviria de modelo para videocasts do tipo mundo afora, como os brasileiros PodPah e Flow.
Sem responder diretamente sobre prejuízos e redução de investimentos, a head de podcasts do Spotify no Brasil, Camila Justo, diz que a empresa aprendeu muito com os parceiros sobre o futuro do formato.
Ela afirma estar ciente de que os criadores “querem uma descoberta melhorada para os ajudar a aumentar o seu público” e “mais opções e flexibilidade em termos de monetização”.
Como próximo passo da estratégia do Spotify para o setor, ela cita a busca para que “mais criadores em mais lugares alcancem o sucesso” e a ampliação de recursos analíticos, com a expansão do Spotify For Podcasters –plataforma que disponibiliza dados sobre os programas. Lista ainda o retorno do Radar Podcasters, “para destacar vozes emergentes”, e a abertura de um estúdio para criadores, o Seu Espaço.
No caso do fechamento do Google Podcasts, tanto a empresa quanto integrantes do mercado dissociam o movimento de uma possível crise no setor, apresentando-o como uma decisão de concentrar no YouTube todo o potencial do formato.
Um dos sintomas da mudança de estratégia é o anúncio de que em breve será possível seguir podcasts via RSS no YouTube Music mesmo se o criador não publicá-lo no próprio YouTube.
Em nota, o YouTube define o atual momento como “a era de ouro dos podcasts” e, sem revelar valores, afirma que em 2024 o investimento da empresa no formato “deve ser ainda maior”.
Diz que, com o fim do Google Podcasts, irá ajudar seus usuários a migrar para o YouTube Music.
“Escutar podcasts no YouTube já é, inclusive, um comportamento comum aos brasileiros: de acordo com uma pesquisa da Offerwise [encomendada pelo próprio YouTube], 69% dos entrevistados pesquisados no país têm o YouTube como sua principal plataforma de podcast/videocast.”
Rodrigo Tigre, head de áudio da multinacional de publicidade digital Adsmovil e autor do livro “Podcast S/A: Uma Revolução em Alto e Bom Som”, considera o fim do Google Podcasts como parte de uma estratégia de unificar no YouTube todo tipo de formato de áudio RSS. “É um bom movimento, que mostra o YouTube começando a olhar mais para o áudio”, afirma.
Tigre enxerga “um momento de organização e profissionalização do mercado” e aponta como sinais de vigor do setor o aumento do número de ouvintes de podcast no Brasil detectado pela pesquisa Inside Audio 2023 da Kantar Ibope e o crescimento da receita publicitária de podcasts nos Estados Unidos revelada em um estudo do IAB.
“Há muito a crescer, estamos no meio do caminho. A Amazon está brigando para entrar para valer num mercado em que YouTube e Spotify estão mais consolidados”, diz Tigre.
No final de 2020, a empresa de Jeff Bezos pagou US$ 300 milhões na produtora de podcasts Wondery, e já atua no setor também no Brasil.
É uma visão semelhante à de Carlos Merigo, fundador e publisher da produtora B9, uma das pioneiras do país. “Como tudo na internet, [o podcasting] tem momentos de espuma, muita gente produzindo, euforia, promessas. Vivemos uma reacomodação, em que aos poucos só vai ficar quem sabe fazer. Quem entrou por modinha está vendo isso agora”, diz.
Um reflexo dessa depuração: representante de outra produtora mencionou o caso de uma firma de lonas para caminhão que os procurou querendo fazer um podcast. Diante da evidente falta de viabilidade comercial, a empresa foi convencida de que era mais negócio anunciar dentro de algum podcast já consolidado.
Merigo observa que, embora a profissionalização seja um caminho sem volta, o podcast é um formato com a vantagem de ser uma “uma mídia barata e democrática” para quem quer começar.
O presidente da Abpod (Associação Brasileira de Podcasters), Andreh Jonathas, comenta que, a partir de 2018, uma nova geração de produtores resolveu melhor questões relativas à divulgação e rentabilização.
“Essa nova geração é muito melhor em marketing do que a anterior. A cautela necessária é para que isso não torne o formato efêmero e a cultura de startup não banalize a mídia, tornando-a insustentável e irrelevante.”
Parte significativa dos novos ouvintes brasileiros é na realidade videospectadores. Nas palavras de Merigo, consumidores “de produtos feitos para viralizar a partir de cortes [edições de pequenos trechos] nas redes sociais”.
Nessa seara, reinam no Brasil o Podpah e o Flow, dois dos podcasts mais ouvidos/vistos do país –não há aferição independente sobre audiência no setor, cada plataforma tem uma métrica própria–, ambos nascidos já como videocasts.
O CEO do Podpah, Victor Assis, diz que o formato não dá sinais de refluxo. “O caminho é justamente o contrário. Fomos dois anos seguidos o podcast mais ouvido do Brasil. No YouTube, nossa audiência e inscritos estão cada vez mais robustos.”
Assis festeja a “internacionalização” do Podpah, com entrevistados estrangeiros e a produção de programas no exterior, e afirma que a empresa planeja para 2024 investir em novos conteúdos, ainda em fase de criação.
Ele observa que o Podpah, por ter nascido no YouTube, sempre foi mais assistido que ouvido, mas que o Spotify, com quem têm contrato e um programa juntos, “é de extrema importância também para atingirmos outros públicos”. “O videocast não canibaliza o podcast só em áudio. Pelo contrário, acredito que amplia alcances.”
Procurado, o Flow não atendeu ao pedido de entrevista nem respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.
O americano John Sullivan, professor de Mídia e Comunicação do Muhlenberg College (EUA), aposta que, após a montanha de dinheiro investida pelas big techs sem retorno à altura, o objetivo dessas empresas agora será “monetizar intensamente (por meio de publicidade direcionada) e promover os podcasts que restaram para maximizar suas audiências e, sempre que possível, monetizar a propriedade intelectual para outros meios de comunicação (como cinema e TV) na tentativa de alcançar lucratividade”.
Sullivan acaba de lançar nos EUA o livro “Podcasting in a Platform Age – From an Amateur to a Professional Medium”, em que mostra como o grande interesse no formato, tanto pela mídia tradicional e pelos veículos digitais, incorporou uma lógica corporativa e profissional a uma atividade originalmente amadora.
FABIO VICTOR / Folhapress