SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Nesse instante, estão reunidos todos os industriais de Sorocaba para estudar os meios práticos de submeterem os pequenos grevistas”, alerta um panfleto do comitê de greve da fábrica Votorantim, em 1912. “Se o vosso apoio não chegar a tempo, as crianças serão vítimas de seus algozes, que algozes nossos são.”
A história dos “pequenos mártires do trabalho”, que lutaram por jornada de oito horas em fábricas do interior paulista no século 20, é um dos fios surpreendentes que o podcast “Cria Histórias” desfia para rememorar o que foi a infância no Brasil.
Ao longo de quatro episódios temáticos, a série mostra que, antes mesmo de saberem ler ou escrever, brasileirinhos já negociavam com patrões, marchavam em greves e enfrentavam castigos para defender colegas. Muitos ocuparam escolas, e alguns hoje ensaiam saídas possíveis para os riscos do ambiente digital.
O podcast costura histórias reais, análises históricas e vozes do presente para provocar o ouvinte a pensar em como redes de cuidado, territórios e políticas públicas moldam e também desamparam crianças.
Cada episódio é uma “caminhada sonora”, como define a narradora Luiza Akimoto, que conduz o ouvinte com delicadeza por arquivos, memórias comunitárias e relatos de estudiosos.
No primeiro capítulo, o roteiro apresenta lado a lado a história da roda dos expostos -estrutura de madeira usada pelas Santas Casas para receber crianças abandonadas no início do século 20- e a trajetória de Madrinha Eunice, matriarca do samba paulistano, que criou mais de 60 crianças em seu quintal na rua da Glória, no bairro da Liberdade, em São Paulo.
Já no segundo episódio, infância e resistência se entrelaçam na história dos operários mirins que contribuíram na redução da jornada de trabalho no país.
A voz de Akimoto e o roteiro rico em descrições transportam o ouvinte para o apito da fábrica, o cheiro de metal quente, a pressa que apressa os minúsculos operários. É nesse ambiente tenso e quase cinematográfico que revelam-se histórias de pequenos que protagonizaram revoltas e até açoites coletivos de capatazes.
“Nosso podcast também tem esse objetivo: contar para todo mundo que as crianças podem até estar vulnerabilizadas, mas elas nunca foram frágeis ou fracas, e muito menos abusáveis”, afirma Akimoto no episódio, entre histórias e depoimentos como de Mário Deganelli, que trabalhava numa fábrica de brinquedos ainda menino e participava de negociações com patrões em meio aos adultos.
“As crianças sabiam se colocar, sabiam brigar”, diz Margareth Rago, professora aposentada da Unicamp que empresta parte de suas pesquisas para ilustrar o episódio.
Enquanto debates como o fim da escala de trabalho 6×1 seguem ecoando nos corredores do Congresso, o podcast lembra estes mártires e grevistas em miniatura que trabalham e lutam por mais direitos há décadas. Lembra também que o trabalho infantil persiste, com novas formas e velhas marcas de raça, classe e gênero.
O terceiro capítulo recupera as ocupações secundaristas de 2015 e olha para a educação como ferramenta de emancipação e resistências juvenil. No quarto e último, a série investiga como o território digital se tornou ao mesmo tempo ameaça e refúgio para jovens, e explora caminhos para um uso mais cuidadoso da tecnologia.
Com cerca de 40 minutos por episódio e trilha sonora original, “Cria Histórias” valoriza o mergulho cuidadoso em cada um de seus temas. A duração relativamente longa, no entanto, pode afastar ouvintes menos acostumados a narrativas densas. Uma edição mais concisa, sem abrir mão da profundidade, poderia ampliar o alcance da série -especialmente entre os públicos que o próprio podcast busca mobilizar. Mas a sonoplastia delicada, o roteiro preciso e a curadoria de fontes acertam ao evitar clichês.
Entre arquivos e vozes que vêm das bordas, constrói-se uma narrativa envolvente que, mais do que denúncia, oferece imaginação política e o reconhecimento de que proteger as infâncias do presente passa por reconhecer a força que sempre tiveram.
CRIA HISTÓRIAS
Onde Disponível nas plataformas digitais
Autoria Iniciativa Cria Coragem
Produção Instituto Çarê e Bruta Mirada, com apoio do Instituto Galo da Manhã
SUZANA PETROPOULEAS / Folhapress
