Poderíamos ter feito mais por uma democracia racial, afirma diretor da Fundação Nelson Mandela

JOANESBURGO, ÁFRICA DO SUL (FOLHAPRESS) – Diretor da Fundação Nelson Mandela, Verne Harris, 66, vê com certa empatia as críticas frequentes na África do Sul de hoje sobre a decisão tomada 30 anos atrás de fazer uma transição negociada do apartheid para uma democracia racial.

“Mandela foi extraordinariamente generoso, e esperávamos que essa generosidade fosse retribuída. Mas não redistribuímos a riqueza”, diz à Folha de S.Paulo.

Na campanha eleitoral deste ano, partidos de esquerda como MK e Combatentes da Liberdade Econômica pregaram que Mandela errou ao promover a reconciliação com os brancos, pela qual virou um ícone mundial da paz. O suposto equívoco estaria na raiz dos problemas econômicos e sociais do país de hoje.

Harris defende Mandela, dizendo que a culpa pela situação atual não é dele, e sim dos governos que o sucederam depois que deixou a Presidência, em 1999.

Especialista em arquivismo, o diretor conviveu diretamente com Mandela, morto em 2013, na última década de vida dele, cuidando de seus papéis. A relação se solidificou e ele passou a dirigir a entidade que cuida do legado do ex-presidente, além de promover programas em áreas como educação, saúde e governança, com financiadores públicos e privados.

Ao receber a Folha de S.Paulo na sede da entidade, em Joanesburgo, mostrou um painel onde está escrita uma frase de Mandela que simbolizaria a dificuldade em construir uma democracia no país. “Não demos o passo final em nossa jornada, mas o primeiro numa estrada mais longa e difícil”.

PERGUNTA – Como a fundação preserva o legado de Mandela?

VERNE HARRIS – Mandela nos deu um mandato para continuar trabalhando por uma sociedade justa, como ele sonhava. Mantemos vivo o legado não desistindo. A luta continua [pronuncia a frase em português].

P. – E tem sido difícil?

VH – Tenho 66 anos, e está claro que não verei o país dos sonhos de Mandela. Ainda temos muito trabalho a fazer. Alguns dias você acorda e realmente quer desistir, porque os desafios parecem avassaladores.

P. – Pode dar um exemplo?

VH – Em 2018, vimos as estatísticas de que uma em cada quatro crianças de 6 anos em nosso país sofria de atraso no crescimento. Fizemos um programa de desenvolvimento na primeira infância. Quatro anos depois, fomos ver se fizemos alguma diferença, e descobrimos que as estatísticas ainda eram muito ruins. É fácil desanimar.

P. – Como conheceu Mandela e como foi sua relação com ele?

VH – Eu era parte da estrutura do CNA [Congresso Nacional Africano] nos anos 90, então ele era meu líder. Mas na época eu não o conhecia. Em 2001, recebi uma ligação de auxiliares dele que conheciam meu trabalho como arquivista. Mandela havia acabado de concluir um processo de paz em Burundi e tinha caixas de documentos, precisava de ajuda para organizar. Em 2004, juntei-me de forma permanente à equipe dele, para montar um arquivo em torno de seus documentos. Mandela era um colecionador obsessivo de registros, o que facilitou meu trabalho.

P. – Como era o trabalho com ele no dia a dia?

VH – Era maravilhoso e assustador. Diariamente, você não sabia com quem iria se encontrar. Poderia ser Pelé, poderia ser Tina Turner. Todo mundo vinha a esse lugar. Mas a parte assustadora era que você não queria irritá-lo. Ele era muito preciso. À medida que envelhecia, foi ficando mais irritadiço. Se você fizesse muitas perguntas, ou se ele perguntasse algo e você não tivesse uma resposta, ficava frustrado. A outra parte assustadora era que também dizia abertamente o que estava pensando.

P. – Como acha que Mandela é visto e percebido pela nova geração?

VH – Sou professor na Universidade Nelson Mandela, fizemos um estudo com os alunos lá. Fiquei surpreso com quantas visões positivas surgiram. Um terço disse que Mandela é interessante historicamente, mas não relevante para os desafios que enfrentamos hoje. Outro terço, mais radical, diz que ele foi um traidor. E o último terço ainda se inspira muito nele.

P. – Na campanha, alguns partidos disseram que a reconciliação proposta por Mandela foi um erro. Como vê essa crítica?

VH – Há um elemento de verdade. Mandela foi extraordinariamente generoso. Criou espaço para os sul-africanos brancos participarem plenamente da transformação de nossa sociedade. Esperávamos que essa generosidade fosse retribuída, mas ainda hoje enfrentamos um enorme desafio. Não redistribuímos a riqueza. Os padrões que se desenvolveram durante a era colonial e o apartheid ainda estão muito presentes.

Temos uma pequena elite negra, mas a grande maioria dos sul-africanos negros não está se beneficiando da liberdade conquistada em 1994, não está compartilhando da riqueza. Mas eu argumentaria que Mandela não é o culpado, e sim as administrações que sucederam a dele, que não seguiram adiante, não implementaram todos os instrumentos especiais de restituição e reparações.

P. – O caminho que ele escolheu de tentar fazer uma transição pacífica foi o correto?

VH – A prioridade era fazer a paz funcionar. E nesse desafio ele teve sucesso. Mas implementar a longo prazo a democracia é o mais difícil. É muito difícil redistribuir riqueza, terras. A crítica que tenho à administração de Mandela é que abraçamos de forma muito entusiástica essa política macroeconômica neoliberal. Poderíamos ter feito muito mais em termos de redistribuição.

P. – Como vê as relações raciais hoje na África do Sul, que era chamada de “nação arco-íris”?

VH – Nunca fomos uma nação arco-íris. A reconciliação não foi sobre perdão e nos tornarmos amigos. Foi apenas uma maneira muito pragmática de dizer: vamos aprender a conviver juntos. Por essa medida, é mais difícil hoje do que era, porque os níveis de frustração ainda estão lá. Há muita raiva.

P. – O que Mandela pensaria da África do Sul hoje?

VH – Eu o observei em 2008, 2009, 2010 e naquela época ele tinha muita dor ao ver o que estava acontecendo. Não acho que seja preciso muita imaginação para saber a dor que ele sentiria hoje.

P. – O sr. acha que ele reconheceria o CNA de hoje?

VH – Ele faria a análise que você e eu faríamos, que as coisas mudaram no partido. Mas não seria uma pessoa desesperada. No escritório, quando as coisas estavam dando errado, ele dizia: “Não adianta reclamar. Qual é o plano?”

Raio-x | Verne Harris, 66

Nascido em Pietermaritzburg (África do Sul), tem formação em história, com mestrado pela Universidade de Natal e especialização em arquivismo pelo Pietermaritzburg Technical College. Integrou o Departamento de Artes e Cultura na Presidência de Nelson Mandela, foi diretor-adjunto do Arquivo Nacional sul-africano e membro da Comissão da Verdade e Reconciliação. Hoje é professor-assistente da Universidade da Cidade do Cabo e professor da Universidade Nelson Mandela.

FÁBIO ZANINI / Folhapress

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