SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As ações afirmativas da USP (Universidade de São Paulo) voltaram a ser alvo de debates e críticas após um imbróglio ocorrido durante cerimônia de homenagem ao professor Kabengele Munanga, um dos primeiros docentes negros da instituição.
Em 2 de junho, durante cerimônia, Munanga recebeu o título de professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e, em discurso, criticou a postura conservadora da universidade em relação às cotas étnico-raciais ao longo das últimas décadas.
“A USP renunciou à sua posição de pioneira e vanguarda intelectual para assumir uma postura conservadora, presa ao darwinismo social dominado pelo discurso da defesa do mérito, da qualidade e da excelência, diante da exclusão do universo universitário de milhões de jovens de ascendência africana, indígenas e brancos pobres, oriundos da escola pública”, afirmou Munanga no evento. “Politicamente, a USP se fechou e se recusou a enfrentar os debates sobre cotas que se desenrolaram nos últimos quase 20 anos.”
A USP implementou em 2017 uma política de reserva de vagas na graduação para candidatos pretos, pardos e indígenas, tornando-se uma das últimas instituições públicas de ensino superior do país a adotar as cotas. A Lei de Cotas, aprovada pelo Congresso Nacional cinco anos antes, é válida somente para universidades e institutos federais.
Após o pronunciamento do homenageado, a vice-reitora Maria Arminda do Nascimento Arruda quebrou o protocolo e pediu a palavra para exaltar as contribuições acadêmicas de Munanga e defender as políticas de inclusão e permanência adotadas pela instituição. “Eu queria chamar atenção para as transformações que a USP tem vivido”, afirmou a vice-reitora na ocasião. “Hoje a Universidade de São Paulo tem 54% dos seus estudantes vindos da escola pública. Hoje a Universidade de São Paulo despende mais recursos com políticas de permanência do que com a folha de pagamentos de professores. E a Universidade de São Paulo pensa que é absolutamente necessário ter uma política inclusiva étnico-racial, de gênero, em todos os campos.”
A intervenção da vice-reitora em um momento solene se tornou alvo de críticas. Em nota publicada em seu site no dia 15, a Associação de Docentes da USP (Adusp) descreveu o pronunciamento de Arruda como uma “agressiva fala do trono”. “Embora o inesperado pronunciamento da vice-reitora tenha se iniciado e terminado com elogios à contribuição de Kabengele, seu sentido geral foi o de uma reprimenda às considerações críticas do professor emérito”, diz o texto.
Em nota enviada à Folha de S.Paulo, a Adusp reiterou suas críticas à vice-reitora e disse que o pronunciamento dela confirma as teses de Munanga sobre a universidade. “O racismo institucional disfarçado nos discursos na USP não é novidade, muito menos surpreende. Porém, quando endereçado diretamente a alguém que está sendo homenageado, requer que manifestemos publicamente a nossa repulsa a quem o pratica, e nossa solidariedade a quem o sofre”, diz a entidade.
Horas após enviar a nota à Folha, a Adusp recuou e informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a diretoria está reavaliando sua posição e que o texto não representa a opinião da entidade.
Houve críticas ao pronunciamento da vice-reitora da USP por parte de outras instituições. Nos últimos dias, circulou em grupos de WhatsApp uma nota de repúdio assinada pela Câmara de Políticas Raciais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que acusa Arruda de ter constrangido Munanga publicamente. “Com tal conduta, desvela aquela vice-reitora o seu desprezo pela causa antirracista e pela ancestralidade negra”, diz a nota.
A UFRJ, por meio de sua assessoria de imprensa, confirmou a autenticidade da nota, mas não se pronunciou sobre o seu conteúdo. Na quinta-feira (22), o colegiado máximo da universidade transformou a Câmara de Políticas Raciais em uma Superintendência-Geral de Ações Afirmativas e Diversidade.
Por sua vez, a vice-reitora afirmou, também em nota à Folha, que a sua gestão vem dando atenção inédita à agenda da inclusão social dos alunos da universidade e cita a criação, no ano passado, da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento, órgão dedicado à implementação das políticas de ações afirmativas e com atuação capilarizada por meio de conselhos em todas as unidades da USP. “Comungando desses valores de solidariedade e inclusão, participei com muita alegria da cerimônia de outorga do título de professor emérito a Kabengele Munanga, oportunidade em que todos reconhecemos a dívida da academia com a população negra, e na qual foram comentados os esforços recentes envidados pela USP no sentido de repará-la”, diz Arruda.
A polêmica ocorrida durante a homenagem a Munanga reacende o debate sobre ações afirmativas na USP em um momento de reorganização do movimento pró-cotas dentro da instituição. O movimento estudantil e o movimento negro pedem por mais ações de permanência aos estudantes de baixa renda que vêm ingressando na universidade em maior número desde a adoção das cotas na graduação.
Além disso, a reitoria é cobrada a estender as cotas étnico-raciais à pós-graduação e aos concursos de docência. No mês passado, a USP aprovou cotas para concursos de professores com mais de três vagas a medida foi vista como insuficiente, uma vez que a maioria dos concursos contempla apenas uma vaga.
Há, ainda, pressão para que a universidade amplie seu programa de ações afirmativas a fim de incluir outros grupos marginalizados, como transexuais e travestis e pessoas com autismo.
Por outro lado, a gestão de Arruda é elogiada por oferecer 50 bolsas de pós-doutoramento exclusivas para pessoas negras no valor de R$ 8.479 mensais. A iniciativa, inédita, é vista como um instrumento para manter os vínculos de pesquisadores negros com a universidade enquanto não conseguem alocação em concursos de docência.
Em entrevista à Folha, em fevereiro, Munanga ressaltou a importância das ações afirmativas no combate ao racismo no Brasil. “As cotas são para reduzir um abismo de 400 anos [de escravidão]. Não se reduz um abismo de 400 anos em 20 ou 10 anos. Apesar da qualidade da política, isso vai demorar gerações”, afirmou.
Munanga é antropólogo e professor aposentado da USP. Ele nasceu em Bakwa Kalonji, na atual República Democrática do Congo, em 1940. Está no Brasil desde 1975.
Ao longo desses anos, ele se debruçou nos estudos sobre antropologia da África e da população afro-brasileira e nas questões raciais. O intelectual contribuiu de forma significativa na discussão sobre raça e para derrubar o mito da democracia racial.
Procurado para comentar as repercussões da cerimônia em sua homenagem, Munanga não quis se pronunciar.
DANI AVELAR / Folhapress