Polícia não precisa de armas na maioria dos casos, diz professora de Yale

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos últimos meses, os Estados Unidos testemunharam uma onda de casos de violência cujas motivações só podem ser descritas como banais. No Texas, duas líderes de torcida foram baleadas depois que uma entrou em um carro que não era seu em um estacionamento escuro. Algo similar ocorreu em Nova York, onde uma mulher foi morta a tiros depois de embocar o veículo na entrada errada enquanto procurava um amigo. Em outro episódio, um adolescente negro foi baleado na cabeça por um homem branco no Missouri depois de tocar sua campainha por engano.

Professora da faculdade de direito da Universidade Yale e uma das maiores especialistas em policiamento urbano dos EUA, Tracey Meares diz que esse cenário não é de todo surpreendente. Ela explica que há vários fatores que podem, de um lado, estimular a violência —como a sensação de insegurança e a presença de armas de fogo—, e de outro, contê-la, como o acesso a serviços básicos. E, durante a pandemia, parte da população americana não só experimentou um aumento de gatilhos de violência, como teve dificuldades para satisfazer suas necessidades básicas, completa.

A ideia se conecta a um dos principais argumentos da pesquisadora, que participa nesta sexta-feira (25) de um seminário organizado pelo IBCC (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) em São Paulo.

Meares defende que a polícia é acionada para lidar com situações de emergência quando as circunstâncias que permitiram que elas explodissem vêm de longa data. “O que as pessoas realmente querem são representantes do Estado trabalhando naqueles problemas no longo prazo. Não são questões que serão resolvidas de imediato.”

Sua conclusão é fruto de uma década de estudos sobre a percepção que cidadãos comuns têm das autoridades nos EUA —país cuja história recente foi marcada por episódios de brutalidade policial, muitos deles motivados pelo racismo.

O mais emblemático deles foi provavelmente o assassinato de George Floyd em 2020. “Não consigo respirar”, fala que o homem negro repetiu ao longo dos nove minutos em que teve a garganta pressionada pelo joelho de um policial branco, tornou-se a frase de ordem de um movimento que tomou o país e provocou um amplo debate sobre a urgência de uma reforma da polícia.

Para Meares, a recorrência de casos como o de Floyd nos EUA se relaciona ao fato de que a forma como a polícia é hoje concebida no país “não corresponde ao trabalho que muitos querem e esperam que ela realize”. Um dos problemas, ela diz, é que os agentes se enxergam como “guerreiros contra o crime” quando o que a população deseja são “guardiões” que protejam suas comunidades. E não só de roubos ou estupros, mas também do abuso de poder por parte das autoridades.

Outro fator que prejudicaria o desempenho da corporação seria o aumento de contingentes como uma resposta automática para questões que, segundo a pesquisadora, têm origem em problemas estruturais. “Nos EUA, quando se pergunta o que o Estado deveria estar fazendo para o bem-estar de seus cidadãos, a resposta, historicamente, é mais polícia”, diz.

Questionada sobre que tipo de mudanças poderiam ser feitas para tornar a polícia mais efetiva, Meares diz que a solução envolve duas frentes. Uma delas é de ações a curto prazo, como submeter os agentes a treinamentos e modificar o escopo de atuação da corporação como um todo. “Não há nada —nada— sobre algumas atribuições do trabalho que exijam a presença de um agente armado”, afirma a pesquisadora, citando como exemplo a fiscalização do trânsito e a intermediação de contendas entre vizinhos.

Já um plano a longo prazo envolveria tentar entender as circunstâncias que culminam em situações de violência. Nesses casos, a solução provavelmente implicaria ações sociais, como oferecer moradia a pessoas em situação de rua e emprego para jovens desocupados. “Pode ser que a resposta seja que as escolas fiquem abertas por mais tempo e sirvam três refeições ao dia. Isso não tem nada a ver com a polícia, mas posso garantir que, se fizermos isso, haverá menos crimes”, diz ela.

O argumento de Meares lembra o do movimento “defund the police”, que ganhou força após o assassinato de Floyd. Seus integrantes defendiam que os governos tirassem verbas da área de segurança pública e as transferissem para áreas como saúde e educação.

À época, a pauta foi encampada pelo Partido Democrata, e alguns prefeitos e governadores chegaram a implementar medidas defendidas pelos ativistas. Com a Covid, porém, os índices de criminalidade dispararam nos EUA ao mesmo tempo em que agentes deixaram a corporação em massa.

Era o que os republicanos precisavam para acusar seus opositores de serem lenientes com a violência —mesmo que vários dos locais que segundo os conservadores se tornaram mais perigosos após aderirem ao “defund the police” na verdade tenham aumentado seus orçamentos destinados às forças de segurança, de acordo com um estudo divulgado pela emissora americana ABC em outubro passado.

De todo modo, os democratas, na época às vésperas das midterms, as eleições de meio de mandato que renovam parte do Congresso, decidiram se afastar da causa. Em fevereiro de 2022, a então presidente da Câmara, Nancy Pelosi, disse que a proposta de cortar verbas para a polícia tinha morrido. Duas semanas depois, em seu tradicional discurso do Estado da União, o presidente Joe Biden disse que a resposta não era diminuir o orçamento das forças de segurança, mas aumentá-lo.

Questionada sobre como vê o “defund the police” hoje, Meares diz que o debate sobre segurança pública nos EUA no momento “é precário e míope”, e “está focando o conjunto errado de perguntas”.

Enquanto isso, casos de brutalidade policial contra homens negros seguem se repetindo. Em janeiro, cinco policiais de Memphis, no estado do Tennessee, foram acusados pela morte de Tyre Nichols, 29, após espancá-lo severamente.

Meares, que foi a primeira mulher negra a obter o título de professora titular da faculdade de direito de Yale, conta que o caso chamou muito a atenção nos EUA porque os agentes suspeitos pelo crime também eram negros. Ela afirma, porém, que o tipo de dinâmica racial por trás de episódios como esse não tem nada a ver com o que chama de “racismo à moda antiga”. “É um tipo de racismo estrutural”, diz ela.

A pesquisadora tem se debruçado cada vez mais sobre o tema por meio de pesquisas na área do “condicionamento racial”. Um dos experimentos que realizou envolvia a divisão de voluntários em dois grupos. A um deles eram exibidas fotografias de homens negros e, a outro, de homens brancos. Em seguida, os pesquisadores apresentavam uma imagem do contorno de uma arma.

Segundo Meares, aqueles que tinham tido contato com os retratos de homens negros reconheciam o objeto muito mais rapidamente do que aqueles que viram fotos de homens brancos. “O que isso mostra é que, nos EUA, a raça está profundamente associada à criminalidade”, diz ela. “Nunca me sujeitei a um experimento desses, mas não ficaria nem um pouco surpresa se reproduzisse esses preconceitos, porque eles são inconscientes.”

CLARA BALBI / Folhapress

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