Polônia preserva memórias do Holocausto além dos campos de concentração

VARSÓVIA E CRACÓVIA, POLÔNIA (FOLHAPRESS) – Poucos locais resumem a miséria humana como Auschwitz. Maior símbolo do Holocausto, o campo de concentração na Polônia ocupada pelos nazistas concentra histórias de crueldade e mortes em massa.

Devido a seus números superlativos —cerca de 1 milhão de judeus foram mortos apenas naquele campo—, a memória que evoca é em grande parte coletiva: testemunhos individuais, mesmo que com suas singularidades, só reforçam o horror generalizado que se deu ali, e seu simbolismo é tão forte que por vezes eclipsa histórias de resistência e brutalidade menos conhecidas fora das fronteiras europeias.

Diante desse contexto, instituições na Polônia buscam preencher essas lacunas para oferecer um quadro mais amplo do que os judeus enfrentaram no país frente à violência da Alemanha de Adolf Hitler.

O Instituto Histórico Judaico, na capital Varsóvia, por exemplo, conserva entre as suas coleções o Arquivo Ringelblum, batizado em homenagem ao historiador que coletou clandestinamente, junto ao grupo que criou, o Oneg Shabbat, testemunhos do Gueto de Varsóvia. Entre a segunda metade de 1940 e o começo de 1942, Emanuel Ringelblum e seus parceiros silenciosamente teceram uma crônica do que acontecia no bairro judeu isolado pelos nazistas que chegou a abrigar 400 mil pessoas em pouco mais de 3 km².

Mesmo sob a repressão imposta pela Alemanha durante a Segunda Guerra, o grupo conseguiu coletar 35 mil páginas de diferentes tipos de documentos, de anúncios feitos pelos invasores a pôsteres de peças de teatro —uma das formas de resistência no gueto era, afinal, a continuidade da vida cultural, ainda que de forma subterrânea. Também foram conservados desenhos, poemas, cópias das listas de moradores nos superlotados apartamentos do bairro murado e até cardápios de cabarés clandestinos.

A parte mais destacada do arquivo, porém, são os depoimentos sobre o cotidiano dos judeus sob a ocupação, já que a maioria dos registros desse período foi produzida pelos próprios nazistas. Os testemunhos reunidos por Ringelblum mostram, ao contrário, a visão das vítimas, em fotos, relatos e outros documentos escondidos em duas leiteiras e dez caixas de metal enterradas. Foi essa forma de armazenamento, aliás, que explica sua sobrevivência mesmo após a destruição do gueto, 80 anos atrás, na sequência de um levante liderado por moradores.

“O arquivo é único em termos de escala, de metodologia e do envolvimento daqueles que o criaram”, afirma Katerine Person, chefe do departamento de pesquisa do instituto e autora de “Warsaw Ghetto Police – The Jewish Order Service During the Nazi Occupation”. “Novos diários e cartas até podem ser encontrados, mas definitivamente nada nessa escala. É único, e temos a sorte de ter esse arquivo.”

Como os registros muitas vezes contam histórias desconfortáveis, explica a pesquisadora, diversas foram as tentativas de barrar a divulgação completa do arquivo. Assim, Person ressalta a importância de expor os documentos, “colocados em dúvida desde o início”, para “fornecer uma plataforma completa para todos, não importa quem eles sejam, não importa quais tenham sido suas escolhas”.

Em outra chave, abraçando um período mais amplo, o Museu Polin, também na área onde ficava o gueto, dedica-se a contar a história dos judeus na Polônia desde o início de sua migração, há mais de mil anos. Retornar ao início desse processo ajuda a entender a trilha de preconceito que viabilizou a morte de 90% da população judia na Polônia —antes da Segunda Guerra, judeus eram mais de 3 milhões no país.

O Polin é uma iniciativa do próprio Instituto Histórico Judaico, em reação ao surgimento do Memorial do Holocausto em Washington, nos EUA. Mas diferentemente do irmão mais velho, sua ideia é exibir não só objetos, mas também histórias orais, explica o historiador e guia Mariusz Jastrzab.

Ali, num prédio de arquitetura arrojada localizado em frente ao Monumento aos Heróis do Gueto, também é possível encontrar uma seção dedicada a Ringelblum, ainda que concentrada, por exemplo, em aspas dos documentos desenterrados, priorizando assim as histórias dos registros, não tanto os itens em si.

Tanto o Instituto Histórico Judaico quanto o Polin oferecem ângulos menos conhecidos do Holocausto, já que a ideia geral sobre o genocídio dos judeus está largamente associada aos campos nazistas de concentração e de extermínio. Muitos dos que querem conhecer essa história acabam visitando esses locais, por vezes incorrendo no que se convencionou chamar de “dark tourism”, ou “turismo sombrio”.

Visitar o local onde ficava o campo de extermínio de Treblinka, por exemplo, é um paradoxo. Diante da chegada iminente dos soviéticos, o aparato nazista montado ali para aniquilar judeus foi destruído, e pouco daquele sistema pôde ser mantido como prova das atrocidades cometidas.

Diferentemente de Auschwitz-Birkenau e Majdanek, hoje museus e nos quais ainda é possível, por meio da preservação de itens e estruturas, vislumbrar as condições em que o Holocausto se deu, a história desse campo se baseia nos relatos dos poucos sobreviventes e nas parcas fotos feitas pelos próprios nazistas.

Assim, lá não há nada e há tudo. Só que em vez de sapatos e malas tomados dos judeus, além de quartos e banheiros coletivos dos campos —que mal podem ser chamados dessa forma, tamanha a precariedade—, Treblinka oferece imagens sombrias projetadas pelos testemunhos, além de monumentos às vítimas.

Ao chegarem ali, judeus poloneses e de tantos outros países da Europa se deparavam com uma estação de trem falsa, com sinalizações indicando a distância para cidades próximas e um relógio pintado que sempre marcava 18h. O objetivo era dar a eles uma mínima sensação de segurança e evitar o pânico frente ao que viria.

Após o desembarque, os prisioneiros eram forçados a correr por um percurso em curva, batizado de maneira sádica de “caminho do céu”, algo em linha com o slogan “o trabalho liberta” de Auschwitz, e projetado dessa maneira para que não fosse possível ver de cara que seu destino eram as câmaras de gás.

Estima-se que entre 800 mil e 900 mil judeus foram mortos em Treblinka, que tinha capacidade para assassinar até 17 mil pessoas em apenas um dia. O trajeto entre a chegada e a morte durava, em média, três horas, espelhando o projeto nazista de cumprir a chamada solução final sistematizada na Operação Reinhard “no menor tempo possível, com o maior número de pessoas e ao menor custo possível”.

O fato de que muitos não sabiam o que iria acontecer ali mostra que o extermínio em curso à época não era algo tão escancarado e, em parte, explica por que vários judeus não fugiram diante daquela situação.

Um guia do Museu de Auschwitz, por exemplo, conta o caso de um judeu deportado da Grécia que, ao chegar ao campo de concentração, depois de dias com sede e fome viajando em um trem lotado, ficou furioso ao ser separado de sua família, uma vez que seus parentes iriam “tomar banho” —a senha para a morte—, e ele, não. O sobrevivente só depois percebeu que nunca mais encontraria os familiares.

Recentemente, um pesquisador do Vaticano encontrou uma carta de 1942 nos arquivos do papa Pio 12 que sugere que a Igreja Católica tinha ciência de que até 6.000 pessoas estavam sendo mortas todos os dias em Belzec, outro campo de extermínio na Polônia ocupada durante a Segunda Guerra Mundial.

Fora as questões ligadas à atuação do pontífice diante da informação recebida, a correspondência privada mostra que a existência daquele cenário, ao menos até aquele ponto, não era largamente disseminada, o que a destruição de Treblinka reforça. Além, claro, da tentativa de evitar a preservação de provas, o esforço nazista ironicamente revela que os alemães tinham consciência de que o extermínio de judeus era errado.

Após o fim da Segunda Guerra, a situação da reduzida comunidade judia na Polônia, já sob controle soviético, seguiu conturbada, inclusive com desdobramentos no presente, com um governo nacionalista de ultradireita que tenta suprimir os relatos de poloneses que colaboraram com a Alemanha nazista.

Sebastian Rudol, vice-diretor do Jewish Community Centre, em Cracóvia, no entanto, vê um momento diferente, com cada vez mais pessoas se assumindo publicamente como judias, como os dados dos últimos censos no país revelam. Se, há dez anos, a pesquisa registrou a existência declarada de 8.000 judeus na Polônia, o último levantamento indicou 18 mil, o que pode ser explicado pelo fato de que agora os entrevistados tinham a opção de marcar mais de uma nacionalidade ao responder a essa pergunta. Mesmo membros de setores progressistas do país fazem uma distinção entre poloneses em geral e judeus.

Outra explicação, afirma ele, é que muitos familiares de sobreviventes que nunca contaram às suas próprias famílias que eram judeus devido ao temor embutido na condição assumiram suas origens apenas há dez ou 20 anos, criando um efeito cascata nas gerações seguintes.

“Mas é importante entender que onde quer que existam judeus, haverá antissemitismo, e este também é o caso na Polônia”, diz Rudol. “Porque a história dos judeus está sempre conectada à história do antissemitismo, e por isso tentamos ensinar à nossa comunidade que o foco contra o antissemitismo não pode ser o ato de antissemitismo em si, mas sempre a resposta que daremos ao antissemitismo.”

O jornalista viajou a convite do Memorial do Holocausto de São Paulo com apoio do governo da Polônia.

DAIGO OLIVA / Folhapress

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