Por que brasileiros não veem mais filmes nacionais, para além de ‘Ainda Estou Aqui’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Desde que foi lançado, há cinco semanas, “Ainda Estou Aqui” foi visto por 2,5 milhões de brasileiros, público maior que o de blockbusters de Hollywood exibidos na mesma época, caso de “Wicked” e “Gladiador 2”. Seu sucesso, porém, é rara exceção para um cinema que ainda não conseguiu voltar ao ritmo anterior à pandemia ou se recuperar do desmonte durante o governo Jair Bolsonaro.

Há anos, é um desafio para que filmes brasileiros fiquem várias semanas em cartaz. O problema não é falta de oferta –se em 2002 foram lançados 29 obras, no ano passado, esse número já era de 161 e neste, até setembro, é de 212, segundo a Ancine, órgão que regula a indústria cinematográfica do Brasil.

São questões que permanecem apesar das leis de incentivo para o audiovisual e da cota de tela, que injetam dinheiro no setor e asseguram espaço nas salas.

Ir ao cinema é um programa caro, o que afasta parte do público, mas sucessos recentes como “Barbie” e “Divertida Mente 2” provam que isso não é verdade para todos. Na realidade, segundo a Ancine, o preço médio do ingresso no país caiu 8% de 2019, quando era de R$ 22,40, para este ano, a R$ 19,70, em valores atualizados pela inflação. Mesmo assim, o público caiu cerca de 34% entre os dois períodos, e em 53% considerando apenas filmes nacionais.

Essa síndrome de vira-lata não acomete a França e a Coreia do Sul, países referência quando se trata do embate entre o mercado interno e o que é feito em Hollywood. Em 2019, na França, o longa francês “Les Tuche 3” só perdeu para “Vingadores: Ultimato” por US$ 200 mil, valor mínimo para um filme da Marvel, acostumada a passar do bilhão de dólares por ano.

Já “Titanic”, quarto filme de maior bilheteria da história, divide o pódio de longas mais vistos na França com “Bienvenue Chez les Ch’tis” e “Os Intocáveis”, feitos por lá. No ranking deste ano, a França tem a comédia “Un P’tit Truc en Plus” e o épico “O Conde de Monte-Cristo”, acima dos americanos “Divertida Mente 2” e “Deadpool & Wolverine” -as duas maiores bilheterias do mundo e do Brasil neste ano.

“O público ficou orgulhoso de ‘Ainda Estou Aqui’ e viu nele a oportunidade de melhorar sua autoestima”, diz o produtor do longa, Rodrigo Teixeira, sobre o sucesso do longa, que retrata uma tragédia comum aos brasileiros pelos olhos de uma mãe de família, Eunice Paiva, que precisa cuidar dos filhos após o sequestro do marido pela ditadura militar.

Mas além desse nacionalismo, os bons resultados do filme também dependeram de um conjunto da obra -desde o elenco carismático, bem conhecido da televisão, até o enredo verídico e os altos investimentos na publicidade. O filme, esperança patriota no Oscar, é o maior sucesso nacional dos últimos cinco anos, mas ainda assim fica em sétimo na lista de filmes mais vistos por aqui.

O que a França faz de diferente, afinal? A começar, o país europeu tem a seu favor um sistema que garante grandes investimentos em todas as etapas da produção e um sistema educacional que inclui cinema como matéria obrigatória nas escolas -afinal, a nação é berço do cinema e de movimentos como a nouvelle vague, alimentando o patriotismo.

Outra medida do país, que tem políticas de incentivo ao cinema desde a primeira metade do século 20, é a taxação de empresas de comunicação que faz há 40 anos, e das plataformas de streaming, há oito. O montante volta para o setor audiovisual francês.

Já no Brasil, a regulamentação do streaming, que prevê a cobrança de tributos de plataformas como Netflix, Max e Amazon, além de gigantes da tecnologia como TikTok e YouTube, está na geladeira desde abril, esperando para ser debatida na Câmara.

Ainda na França, a quantidade de salas em que os exibidores podem ter filmes estrangeiros é limitada -a norma, imposta na nova cota de tela brasileira, foi polêmica entre o empresariado.

“É um sistema que nos permite subsidiar tudo, do roteiro à transmissão, e que também é benéfico para a indústria, porque o dinheiro investido retorna”, diz em entrevista Jérémie Kessler, diretor para assuntos internacionais do Centre National du Cinéma et de L’image Animée, o CNC, órgão equivalente à Ancine no Brasil.

A regra vale também por aqui. Um estudo encomendado pela Motion Picture Association à Oxford Economics, em 2019, mostrou que a cada R$ 10 milhões movimentados pela indústria do cinema para a produção de filmes, outros R$ 13 milhões foram adicionados indiretamente ao PIB nacional.

A Coreia do Sul também é exemplo. A “hallyu”, ou onda coreana, inundou o mundo com os doramas após o país asiático instaurar uma política semelhante à francesa a partir da sua redemocratização, em 1987.

“A educação foi vinculada a uma transformação cultural. O cinema foi inserido nos estudos formais coreanos, desde os níveis elementares até o ensino superior”, diz Josmar de Oliveira Reyes, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e especialista em cinema sul-coreano.

A estratégia gerou frutos em tempo recorde. Nos anos 2000, diretores como Park Chan-wook, Kim Ki-duk, Li Shandong e Hong Sang-soo acumularam prêmios nos festivais de Cannes, Veneza e Berlim, alcançando prestígio similar a Japão e China.

Esses cineastas voltaram ao país com mais liberdade para apostar em grandes orçamentos, sem abdicar do rigor estético. Hoje os coreanos são mais entusiastas que os franceses, e filmes nacionais lideraram as bilheterias do país em 15 dos últimos 20 anos.

A coroação veio com a vitória de “Parasita” no Oscar, há quatro anos, como primeiro filme de língua estrangeira a vencer também a estatueta de melhor filme.

O que falta ao Brasil, diz Reyes, é aquecer a indústria e “criar desejo e identidade do cidadão em relação ao audiovisual”.

Hoje, com exceção da produção constante da Globo Filmes, o Brasil não tem uma política industrial para o audiovisual, afirma Walkiria Barbosa, empresária, produtora e fundadora do Festival do Rio. Ela se queixa, por exemplo, do setor não ter sido contemplado pelo Programa da Nova Indústria do Brasil, assinado em janeiro pelo presidente Lula.

O valor repassado pelo governo ao setor audiovisual ainda é baixo, diz, e não contempla todas as etapas que levam ao bom posicionamento de um filme no mercado. O maior déficit está na divulgação das obras.

Festivais como o do Rio, aliás, também ajudam a gerar burburinho sobre novos títulos. O problema é que, no Brasil, esses eventos ainda se limitam aos cinéfilos. “Lá há cartazes por todos os lugares, nos ônibus, por exemplo, e é comum que cineastas apresentem seus filmes em telejornais, no horário em que está todo mundo em casa vendo as notícias”, diz Reyes.

“Não adianta ter produtoras e fazer 200 filmes se não existe uma política de mercado”, complementa Barbosa, a produtora. “Precisamos aumentar o parque exibidor no Brasil. Milhares de municípios não têm uma sala de cinema”, diz. Hoje o país tem 3.481 salas, um pequeno aumento em relação a 2019, mas um terço delas está em São Paulo.

Ir ao cinema não é, afinal, um hábito espontâneo. O costume precisa ser estimulado a toda hora, insiste Kessler. “É um processo contínuo, não é fácil, e é preciso ter uma vontade política forte.”

ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress

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