SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Esgotados por rotinas árduas e um mercado de trabalho competitivo, escritores e leitores do Japão e da Coreia do Sul vêm tentando aplacar suas angústias com livros sobre pessoas sofridas, que levam vidas mundanas e, páginas depois, alcançam a plenitude. Batizado de “healing fiction”, ou ficção de cura, o gênero agora abarrota livrarias brasileiras.
As tramas são singelas, com poucos personagens e cheias de gatos fofos e lições de moral. Se passam em lugares comuns e acolhedores, como cafeterias, bibliotecas e lojinhas, que viram quase clínicas terapêuticas, por onde pessoas deprimidas tentam reencontrar propósito na vida bebericando cafés ou zanzando entre prateleiras.
Um expoente é o romance “Bem-Vindos à Livraria Hyunam-dong”, sobre uma mulher desolada que decide realizar o sonho de abrir uma livraria e, assim, devolver significado à própria existência.
Trazido da Coreia do Sul pela Intrínseca no ano passado, o livro foi escrito por Hwang Bo-reum, que em setembro vem ao Brasil para a Bienal do Livro de São Paulo. Em entrevista por escrito, ela diz que a ficção de cura só funcionou tão bem no seu país porque sul-coreanos vinham procurando uma forma de escapar da dura lógica sob a qual vivem.
“Estamos sempre nos criticando e nos punindo, pensando que temos que acompanhar o nível de vida dos outros. Às vezes até tiramos um tempo para nos consolar, mas depois voltamos a nos castigar”, afirma.
Esse sentimento de aflição se intensificou durante a pandemia de coronavírus, quando os sul-coreanos foram obrigados a largar as máquinas para se trancar em casa. A mudança forçou muitos deles a desacelerar e, enfim, pensar em saúde mental.
É o que diz a também sul-coreana Miye Lee, que lançou “A Grande Loja de Sonhos: O Sonho que Você Encomendou Está Esgotado” em meio ao primeiro pico da Covid-19. Em 2021, o livro ficou entre os mais vendidos do país, antes de chegar ao Brasil pela Martins Fontes.
“As pessoas do meu país estavam se sentindo desamparadas, o que fez despertar nelas apreço por histórias que proporcionam uma espécie de cura emocional”, diz a autora, que narra o dia a dia de uma loja que lida não com doces, mas memórias, desejos e pesadelos. “Elas queriam histórias que estimulassem sua imaginação sem deixar de parecerem realistas para sentirem alívio frente a uma realidade difícil.”
O gênero é disputado pelas editoras brasileiras. A Intrínseca lançou três títulos no último ano, e acaba de tirar do forno o japonês “Vou Te Receitar um Gato”. A Bertrand Brasil publicou cinco desde novembro, como “A Inconveniente Loja de Conveniência”, que foi o livro mais vendido da Coreia do Sul no ano retrasado. A Sextante trouxe “A Biblioteca dos Sonhos Secretos”, e a Morro Branco entrou na roda com “O Castelo no Espelho”.
“O sucesso da ficção de cura norteou toda a cadeia do mercado literário”, diz Renata Pettengill, editora da Bertrand. “Do nada a gente começou a receber muitos emails de agentes que representam editoras ou agências asiáticas com uma curadoria do gênero que estava funcionando nesses países.”
Tamanho interesse do mercado brasileiro parte de uma onda que cresce na Coreia do Sul, mas que nasceu no Japão, segundo o pesquisador Luis Girão, que traduz livros do gênero.
Para ele, o livro japonês “The Miracles of the Namiya General Store”, ou os milagres do armazém de Namiya, é ponto de partida na popularização do gênero. Publicada em 2012, a trama apresenta pessoas desesperançosas que se reúnem num comércio para encontrar amparo umas nas outras. O romance migrou anos depois para a Coreia do Sul, onde virou hit após ser visto nas mãos do cantor Jin, do grupo de k-pop BTS.
A relação do Japão com histórias existencialistas existe há décadas, afirma a pesquisadora Joy Nascimento, que dá aula de literatura japonesa na Universidade Estadual Paulista.
“Já no pré-Segunda Guerra havia escritores japoneses com forte influência da filosofia alemã que se debruçavam sobre questões do indivíduo. Depois, os autores se empenharam em reconstruir as ruínas da nação e, nesse sentido, escreviam sobre suas questões internas.” A diferença é que, hoje, sob o novo rótulo, um número maior de escritores está prestando atenção na emergência do gênero e, por isso, o mercado inflou.
Um fator comum explica o sucesso dos livros em ambos os territórios a superlotação nas capitais dos países, Seul e Tóquio, cheias de gente atrás das melhores oportunidades de trabalho, afirma a professora Yun Jung Im, que já viveu 14 anos na Coreia do Sul e hoje dá aula de cultura coreana na Universidade de São Paulo.
Esse processo de migração para as metrópoles aumentou a especulação imobiliária, encarecendo o custo de vida. Assim, quem se mudou para as capitais na ânsia de realizar sonhos está, na verdade, trabalhando muito para viver de forma precária. Desesperançosas, as pessoas encontram afago nas jornadas utópicas dos livros.
É preciso levar em conta nessa equação ainda os “hikikomori”, termo usado para se referir a jovens japoneses com o psicológico tão sofrido que se isolam da sociedade e, em alguns casos, ficam anos sem sair de casa.
Isso explica porque a literatura de cura japonesa trata de assuntos mais difíceis, como luto e morte, enquanto a sul-coreana ainda segue a linha do “tire tempo para si e desfrute do seu café”, afirma Nascimento, a professora da Unesp.
No japonês “Se os Gatos Desaparecessem do Mundo”, o protagonista barganha com o Diabo por mais dias de vida. Já em “A Lanterna das Memórias Perdidas”, pessoas se deparam com um estúdio fotográfico que fica entre o plano da vida e da morte, onde precisam escolher momentos marcantes para reviver.
“Os escritores japoneses contemporâneos da chamada ficção de cura estão dando um passo mais crítico agora”, diz Nascimento. “As mulheres, especialmente, querem repensar o papel delas na sociedade, e perguntar por que precisam trabalhar mil horas e quem sai ganhando com isso.”
É comum que, ao fazer as críticas, os escritores recorram à fantasia, como faz a sul-coreana Yun Jungeun, autora de “A Incrível Lavanderia dos Corações”. Seu livro narra a história de uma lavanderia encantada onde pessoas podem limpar as dores que afligem seus corações. Assim, eles são obrigados a pensar se apagar de vez o sofrimento é a solução para seguir em frente.
É também a pegada de “A Biblioteca da Meia-Noite”, o romance de ficção de cura que mais bombou no Brasil. Ele é o livro de ficção mais vendido deste ano, segundo o Publish News, site que monitora as vendas literárias do país.
Na trama, ao tentar se suicidar, uma mulher é levada à biblioteca que guarda as diferentes vidas que ela poderia ter tido. Ali, ela é incentivada a experimentar outros destinos para ver quais teriam salvado ela da depressão e, atenção para “spoiler”, ela descobre que nenhum.
Mas o livro não é japonês nem coreano, mas americano, escrito por Matt Haig, que tem como tônica para sua literatura essa mistura de ficção e terapia, após ele mesmo sofrer de depressão.
O livro esteve no centro de uma discussão que se alastrou pelo mercado literário no ano passado a de que a ficção de cura cria uma ilusão nociva sobre plenitude. No ano passado, o influenciador Felipe Neto, um dos mais famosos do mundo, disse no Instagram que o romance era “raso e uma autoajuda das mais vagabundas”.
As autoras se defendem. “O cuidado interior e o enriquecimento mental não ajudam [proporcionados pela literatura de cura] a orientar a sociedade em direção a uma atmosfera mais suave e calorosa?”, diz a sul-coreana Jungeun, ao ser questionada sobre as críticas. “Ainda que não consiga resolver completamente todos os problemas sociais, não é possível contribuir para reduzi-los um pouco?”
Miye Lee, de “A Grande Loja de Sonhos”, concorda. “Definir livros com regras rígidas é como erguer barreiras que eventualmente terei de remover para desfrutar do vasto oceano que é a literatura.”
GUILHERME LUIS / Folhapress