Por que relações gays de séculos atrás alimentam a literatura escrita até hoje

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Feitiçaria, protestantismo, bigamia, opiniões heréticas, erros luteranos: nada era pior e ofendia mais a criação que a sodomia.”

Esse pecado, o pior de todos segundo descreve o vocabulário típico do Brasil colonial, era a relação homossexual.

E está estampado na capa do novo romance de Alexandre Vidal Porto, “Sodomita”, a história de Luiz Delgado, um homem degredado de seu Portugal natal para a Bahia por se envolver com um prisioneiro do mesmo sexo —um acontecimento real que o autor cavou para inspirar uma trama que, de resto, tem contornos ficcionais.

Delgado tenta levar um casamento de fachada com a prudente Florência, mas a determinado momento se libera em direção a seus desejos naturais e irreprimíveis, praticando com gosto “tudo o de mais aberrante”.

“Somitigarias, maus pecados, velhacarias, fanchonices, ósculos, amplexos, molícies de toda sorte, fornicações perversas, mamadas, punhetas, coxetas, vício italiano: tudo isso praticou com muitos.”

Essa “genealogia dos viados brasileiros”, nas palavras do autor, é também uma “genealogia da resistência” que quer escancarar como as pessoas que não se conformam à heterossexualidade sempre estiveram aí. Apesar de tudo.

O romance retrata como a Inquisição era implacável contra os homossexuais, não só reprimindo sinais de paixão entre pessoas do mesmo sexo, mas culpando seus praticantes por supostos castigos divinos contra toda a Terra. O período de maior perseguição à sodomia, diz Vidal, coincidiu com o de mais grave de crise econômica na Bahia naquela época.

“Queria mostrar como a gente vira bode expiatório em momentos de crise”, comenta o escritor de 58 anos, enquanto toma um café em seu apartamento em São Paulo. “E como os argumentos são os mesmos que a direita religiosa usa hoje, vindos de um dos períodos mais terríveis da história ocidental.”

Para construir a narrativa, Vidal Porto se ancorou na linguagem das atas documentais do Brasil colonial, o que não quer dizer que a leitura é difícil.

“Foi um livro que escrevi como uma brincadeira. Saí da sintaxe seca das minhas outras obras e mudou toda a minha relação com o ato de escrever. Foi como descobrir uma nova posição para transar com as palavras.”

Outro romance de forma e conteúdo refrescantes nasceu quase ao mesmo tempo nos Estados Unidos. “Os Profetas” conta o amor entre Isaiah e Samuel, dois homens escravizados.

Enquanto sofrem os suplícios do trabalho forçado numa fazenda, também na era colonial de seu país, os protagonistas encontram uma fenda de liberdade na intimidade de que gozam no espaço seguro de um celeiro.

Ao longo do romance, que teve o mérito de se tornar best-seller e finalista do National Book Award, os dois garotos são acossados pela ascensão de Amos, também um homem negro que se torna porta-voz do cristianismo para cair nas graças do fazendeiro Paul.

Seu autor, Robert Jones Jr., dá a entrevista por vídeo com um retrato do jovem James Baldwin pendurado acima de seu ombro direito e um de Toni Morrison, mais velha, sobre o ombro esquerdo. É ela que o escritor começa mencionando.

“Morrison dizia que, se você não encontra o livro que quer ler, precisa escrever. Eu li tantas, tantas narrativas da escravidão nos Estados Unidos e a única referência ao envolvimento entre pessoas do mesmo sexo era na chave do abuso. E eu pensava ‘onde está o amor?’.”

Jones então lembra outra frase famosa de Morrison —ficção não é fato, mas é verdade. “Eu precisava entender o que foi omitido, destruído da história. Havia lacunas a serem preenchidas. Minha escrita, ainda que seja ficcional, serve para a história fazer sentido para mim.”

Vidal Porto, diplomata que hoje ocupa o posto de cônsul-geral do Brasil em Amsterdã, teve impulso semelhante ao buscar os amores homossexuais nas origens do Brasil —é como se procurasse contar a história do país em que queria viver.

É claro que o registro de vidas LGBTQIA+ em séculos passados não é inédito —para lembrar só dois estudos brasileiros, há o clássico “Devassos no Paraíso”, de João Silvério Trevisan, e o recente “Novas Fronteiras das Histórias LBGTI+ no Brasil”, de João Souto Maior e Renan Quinalha.

Mesmo na literatura, Eliana Alves Cruz já fez uma personagem trans se apaixonar num romance de época, “Nada Digo de Ti, que em Ti Não Veja”, e Saidiya Hartman fez fabulação poderosa a partir de uma pesquisa acadêmica sobre pessoas queer na virada para o século 20 em “Vidas Rebeldes, Belos Experimentos”.

Em exemplos um pouco distintos, a editora Ercolano chegou há pouco ao mercado oferecendo narrativas LGBT resgatadas do começo do último século —publicou até agora os franceses “A Menina que Não Fui” e “O Beijo de Narciso”— e a Carambaia reeditou “Asas”, romance gay russo que foi muito menos escandaloso do que você pensa quando saiu, em 1906.

Isso porque a aceitação da homossexualidade não avança num caminho exatamente linear. Vidal Porto lembra que no Brasil colonial confluíram três culturas que, diferentemente da dominante, “eram tolerantes à cópula anal”, os indígenas tupinambás e tapuias e os escravizados que vinham de Angola.

É por isso que o país africano aparece, a certa altura de “Sodomita”, como uma espécie de idílio, apesar de ser considerado pela metrópole como outra terra de degredo. A punição de uns é o presente de outros.

É algo afinado também ao discurso de Jones. O escritor afirma que o colonialismo europeu inseriu nos povos africanos a ideia de que havia algo de pecaminoso nas relações homossexuais —e cuidou de obliterar a memória das culturas praticadas antes. Por isso, hoje vemos no continente algumas das políticas mais agressivas contra LGBTs.

Aí ele cita seu outro “padrinho espiritual”, James Baldwin. “Para uma sociedade capitalista funcionar, seus cidadãos precisam se submeter a certas regras. Precisam arranjar seus relacionamentos para continuar gerando soldados para defender o país e trabalhadores para a economia seguir em frente. A homossexualidade interrompe esse sistema.”

“Antes da colonização”, sintetiza ele, “o que chamamos de existência queer era só uma existência normal”.

SODOMITA

Preço R$ 69,90 (160 págs.); R$ 37,90 (ebook)

Autoria Alexandre Vidal Porto

Editora Companhia das Letras

OS PROFETAS

Preço R$ 79,90 (456 págs.); R$ 39,90 (ebook)

Autoria Robert Jones Jr.

Editora Companhia das Letras

Tradução Viviane Souza Madeira

WALTER PORTO / Folhapress

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