Por que Sylvia Plath ressurge muito além da poeta suicida em novos livros

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sylvia Plath não ganhou um obituário do New York Times quando morreu, uma praxe para todo autor do seu calibre, e até abaixo dele. Outro jornal, o conterrâneo Boston Globe, dedicou oito burocráticas linhas à morte da senhora Hughes —preferiram usar seu nome de casada. O breve texto destacou os laços familiares da “esposa de Ted Hughes” e “mãe de Frieda e Nicholas”.

E cá estamos, 60 anos depois, com Plath em seu devido lugar: uma das maiores vozes literárias do século 20, relembrada por uma série de lançamentos que chegam às livrarias brasileiras. Pela Companhia das Letras saem uma coletânea completa de sua poesia e “Euforia”, romance em que a sueca Elin Cullhed assume o ponto de vista da escritora americana para narrar seus últimos dias.

A Biblioteca Azul prevê ainda, para julho, uma edição especial de “A Redoma de Vidro”, único romance da autora, que o publicou sob o pseudônimo Victoria Lucas semanas antes de se suicidar. A tradução é da poeta Ana Guadalupe.

Plath tinha 30 anos quando deixou leite e pão para a filha de quase três anos e o filho, de um ano, tampou as frestas das portas com pano e ligou o gás. Foi encontrada morta no chão de sua cozinha na manhã de 11 de fevereiro de 1963.

As crianças dormiam no andar de cima da casa que já tivera o poeta irlandês W. B. Yeats como morador, em Londres. Ela havia se mudado para a cidade após ser abandonada pelo marido, Ted Hughes, também ele um dos grandes poetas da língua inglesa.

A amante dele, Assia Wevill, era uma judia que deixou a Alemanha nazista em 1934 e se matou seis anos depois da mesma forma, com gás, mas levando junto a filha Shura, 4. Em 2009 foi Nicholas, o caçula de Plath e Hughes, quem tirou a própria vida. Enforcou-se aos 47 anos.

Muito da escrita visceral que eternizou Plath vem de temporadas sombrias, sobretudo seus últimos meses de vida. “Lady Lazarus”, um de seus poemas mais ilustres, confunde-se com um epitáfio. “Essa mulher-que-sorri”, que tal qual gato tem “sete vidas para viver”, sugere três tentativas de suicídio.

“Dying is an art, like everything else. I do it exceptionally well”, diz a certo ponto. Na tradução da poeta Marília Garcia: “Morrer é uma arte, como tudo. É algo que conheço a fundo”.

Sylvia Plath virou um ícone para várias gerações, transpassando a fronteira literária para entrar na cultura pop. Frases suas viraram tatuagem, com destaque para “I am. I am. I am.” —”eu sou, eu sou, eu sou”, em português—, de “A Redoma de Vidro”.

A escritora chegou a aparecer em “Os Simpsons”, como leitura preferencial de Lisa, a filha intelectual da família. Em 2003 veio uma cinebiografia com Gwyneth Paltrow.

Sofreu múltiplas rejeições em vida, contudo. Seu romance, por exemplo, não agradou editores. Um deles escreveu à “sra. Ted Hughes” para dizer que até gostou da primeira parte de “A Redoma de Vidro”, mas lamentou a segunda. Outra deu parecer semelhante: “Eu não estava nem um pouco preparada, como leitora, para aceitar a extensão da doença [mental] e a tentativa de suicídio [da protagonista]”.

O livro conta a história de Esther, que deixa o subúrbio de Boston para virar universitária, consegue estágio numa revista feminina e frequenta a sociedade intelectual da época. Tudo desanda, e ela vai para uma clínica psiquiátrica. O enredo tem inspiração óbvia: 1952, quando Plath passou por experiência gêmea.

A perda precoce do pai, quando ela tinha 8 anos, foi um baque que transbordou para sua literatura. Em “Paizinho” expressou o luto: “Paizinho, eu devia ter te matado, juro. Mas você partiu antes da hora”.

“A morte precoce de Sylvia Plath se tornou uma chave inevitável para ler sua poesia. Mesmo sem levar em conta o trágico desfecho de sua biografia, a morte aparece como um dos temas centrais de sua obra”, diz Alice Sant’Anna, poeta que edita a autora na Companhia das Letras.

“Há muitos poemas que descrevem salas de cirurgia, situações sombrias, assustadoras, ameaçadoras.”

Mas não é tudo. “Por outro lado, é interessante ver que a vida aparece com força total em referências botânicas, marítimas, geográficas. A natureza, com toda sua ambivalência —sua beleza, mas também sua violência— é um dos temas mais marcantes de seus poemas.”

“Sou Vertical”, parte da coletânea, dá mostras desse contraponto entre morte e vida: “E vou ser útil quando me deitar para sempre: as árvores vão me tocar enfim, e as flores terão tempo para mim”.

Cullhed, a sueca que escreveu emulando a voz de Plath, lembra que muitos escritores homens se mataram, caso de Ernest Hemingway. Mas isso virou uma nota biográfica, e não a razão pela qual ficaram famosos. “Colocaram muita culpa em cima dela”, diz. Era como se o epílogo fúnebre obliterasse toda a sua obra.

Talvez a história da poeta tivesse outro arremate “se ela vivesse um pouco mais e tivesse experimentado os movimentos feministas”, diz Cullhed.

Anos após se suicidar, aborto e divórcio deixaram de ser tabu em vários cantos do mundo, aponta a sueca. “Por isso é tão trágico, ela estava na beira, mas parte antes dessa nova era”.

Cullhed abre sua ficção sobre Plath com a escritora listando sete razões para não morrer, três meses antes de seu fim. Primeiro lugar: os filhos Frieda, “que precisa de cócegas para se sentir viva”, e Nicholas, “na cama quando vira palhaço e eu esfrego a cara em seu bumbum”.

Ela sabe: “Jamais posso deixar de viver para eles, por mais que também tenham e pele de Ted, a pele de serpente de Ted”.

Ted. Ah, Ted. Sabemos com essa história termina, e Cullhed reconhece o tamanho que Hughes tomou na trajetória da esposa, mesmo quando a deixou. “Alguém pode ser muito presente na ausência, atrair para si toda a energia do ambiente.”

A versão romanceada de Hughes chega a dizer que sua missão na vida é ser livre. Leia-se: eximir-se dos deveres como pai e ter uma amante. A Sylvia de “Euforia” admite: havia sido “ferrada pelo machismo” por um homem “frio como presunto enlatado”.

Como disse certa vez a escritora americana Joyce Carol Oates, uma citação a qual Cullhed se afeiçoou: “Talvez nenhum homem seja capaz de pensar em si mesmo nos termos em que uma mulher pode pensar nele”.

A sueca conta que conheceu Plath aos 20 anos e só a recuperou tempos depois, quando se viu com três filhos pequenos e um burnout. Se antes via a poeta que tanto admirava como vítima de doença mental e nada mais, sem entender como foi capaz de deixar seus filhos para trás, Cullhed mudou de ideia depois de se sentir assaltada pela exaustão.

“Achei muito difícil fazer meu parceiro entender o que eu estava passando. Como se fosse algo indizível. Uma perda de linguagem.” Talvez, pensou, sua escritora preferida se sentisse um pouco assim também.

Em 2018, passados 55 anos, o mesmo jornal que havia ignorado a morte de Plath decidiu escrever sobre ela. Desde 1851, justificou o New York Times, “em nossos obituários prevaleceram homens brancos”. Chegara a hora de honrar mais notáveis.

“Gosto de pensar que ela de alguma forma ajudou a abrir e legitimar a raiva feminina”, disse à publicação Gail Crowther, autora de títulos sobre a escritora.

O texto termina com a conclusão de “Lady Lazarus”, menos lembrada, mas tão pungente quanto a passagem sobre a arte de morrer que Plath tanto dominava.

Eis: “Das cinzas me levanto, ruiva, sem nenhum disfarce. E devoro homens como se respirasse”.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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