SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Seria maravilhoso se pudéssemos lembrar de tudo com clareza”, escrevia o jovem Vincent van Gogh, que ainda não pintava, ao irmão Theo, em 1877. “Mas assim como a vista de uma longa estrada, à distância as coisas parecem menores e como uma névoa”. A carta se tornou uma premonição de como o mundo enxergaria, nos séculos seguintes, um dos artistas mais populares da história.
Do fim do século 19 até hoje, Van Gogh se tornou um mito que transbordou os limites da história da arte, caindo no gosto popular. Não é preciso ser um entusiasta da pintura para conhecê-lo. De adaptações cinematográficas a estampas de meias, a “Noite Estrelada” está por toda a parte.
A tela foi pintada quando Van Gogh estava internado em um hospital psiquiátrico. O período, somado ao suicídio trágico e banhado pelos raios de sol do sul da França, os mesmos que ele eternizou com pinceladas expressivas e cores radiantes, o batizaram como gênio perturbado.
O estigma, porém, foi quebrado por historiadores, não só pelas cartas endereçadas ao irmão, Theo, mas também pela correspondência trocada com outros artistas, como Paul Gauguin e Émile Bernard. Pela primeira vez, as mensagens são publicadas no Brasil pela Editora 34, em uma nova versão de “Cartas a Theo”.
“Ele não era um gênio, porque trabalhava duro. Ele também não era louco. Ele tinha episódios de psicose, mas quando tinha crises, não pintava ou escrevia cartas”, diz Wouter van der Veen, especialista na vida e obra de Van Gogh e diretor científico do Instituto Van Gogh, em Paris. Quando a sua saúde mental começou a piorar, Van Gogh passou a temer as crises e, a qualquer sinal de que uma poderia surgir, trabalhava mais para recompensar o tempo que ficaria sem pintar.
Em praticamente todas as cartas, Van Gogh falava sobre seus treinos infindáveis de pintura e desenho, que segundo ele próprio eram a única fórmula do sucesso. Ao contrário do que foi popularizado pelo senso comum, as crises psicóticas do artista em nada ajudaram a criar as paisagens tocantes que, junto às obras de Paul Cézanne, criaram a faísca para as vanguardas artísticas que romperam com a academia no século 20.
Apesar do existencialismo e da melancolia serem constantes nas cartas enviadas durante toda a vida adulta, a primeira crise grave do pintor foi o corte da própria orelha, motivada pela saída de Gauguin da casa onde moravam em Arles e também pela culpa de, aos 35 anos, ainda receber ajuda financeira do irmão.
Estudos recentes indicam, segundo Veen, que além de algum possível transtorno psicológico, Van Gogh também poderia ter contraído sífilis, o que explicaria o agravamento das alucinações em seus últimos anos ainda que a hipótese não possa ser comprovada.
Van Gogh decidiu que seria pintor aos 27 anos. Sua licença para pregar no Borinage, região de mineração na Bélgica, não foi renovada, e ele desistiu da carreira de pastor. “Isso não é mencionado nas cartas, mas ele era um pregador muito fervoroso e questionava as hierarquias na frente dos operários”, diz Felipe Martinez, um dos organizadores das cartas para a nova edição da 34.
Antes disso, ele trabalhou como galerista, profissão que depois seria de seu irmão, Theo. Apesar da boa instrução, era entre as classes mais baixas que Van Gogh dizia se sentir confortável, e foi entre os mineradores que relatou ter o “impulso” de desenhar. Em seus primeiros anos como pintor, ainda na Holanda, os trabalhadores eram o foco de suas telas é no período que nasce “Os Comedores de Batatas”, considerada por Van Gogh como sua obra prima antes de ir à França. Com cores escuras, o quadro retrata uma família de camponeses durante o jantar.
Rejeitado pela família por não seguir uma profissão considerada respeitável e por iniciar um relacionamento com a prostituta Sien Hoornik, Van Gogh se sentia um pária e foi na arte que encontrou um sentido para a vida. “O sonhador cai às vezes em um poço, mas dizem que ele retorna. Eu não daria um vintém pela vida se não houvesse nela algo infinito, algo profundo, algo verdadeiro”, escreveu ao irmão.
Ainda que com as energias renovadas, Van Gogh sofria com a marginalização dos artistas de sua época, e reclamava constantemente do mercado das galerias que acusava de sobrepor o lucro ao real significado da arte, ainda que seu maior desejo fosse conseguir vender obras em quantidade suficiente para sustentar uma vida confortável.
“No século 19, o artista deixa de ter um lugar bem definido na divisão social do trabalho”, lembra Martinez. Antes, os pintores tinham o papel de representar ou de difundir uma mensagem com propósito definido, e com frequência trabalhavam para instituições ou pessoas poderosas. “Começa a associação do artista como louco, que não obedece às normas sociais, e no caso dele isso explode devido às crises.”
Quando se muda para Paris, em 1886, Van Gogh desistiu de ser fiel ao mundo para se entregar à própria subjetividade, alinhado à ideia de criar uma poesia própria através da pintura. É nesse momento que descobre o poder das cores, ou como ele próprio escreve, “que coisa imensa são o tom e a cor! E quem não aprender a sentir isso, como se afastará da vida!”.
Foi também em Paris que o pintor fez amizade com Henri de Toulouse-Lautrec, Émile Bernard e Paul Gauguin, antes de se mudar para Arles para pintar os efeitos do sol na natureza, influenciado pelos impressionistas. “Van Gogh pensava o impressionismo como dividido em dois grupos. Os antigos e ricos, como Monet e Degas, e aqueles ainda sem reconhecimento, como Bernard e ele próprio”, explica Veen. “Como o movimento não tinha um manifesto ou técnicas definidas, Van Gogh relaciona o impressionismo à inovação e a busca do artista por uma voz própria.”
Em uma de suas primeiras cartas a Bernard, Van Gogh aconselha o amigo, ligado ao cloisonnisme, caracterizado por cores lisas e contornos escuros, a não se indispor com os pontilhistas. “Ele queria falar com o máximo de pessoas possíveis para trocar ideias sobre técnicas e cores”, diz Veen.
Além de sua admiração pela arte japonesa, em especial por Katsushika Hokusai, Van Gogh deu a Bernard descrições precisas sobre seu método de pintura, feita por “golpes irregulares” para capturar apenas “o que é essencial” e depois “limitar os espaços com contornos”.
O holandês desaconselhou o amigo a se entregar à boêmia, que, segundo ele, atrapalhava a concentração no trabalho. “Pintar e fazer muito sexo não são coisas compatíveis”, assegurou. A Bernard, confessou sua maior inquietação: pintar um céu noturno. A tela seria parida só depois, para se tornar um marco da pintura ocidental.
Van Gogh insistiu para que Paul Gauguin, com quem trocava constantemente esboços por carta incluindo “A Arlesiana”, que está no Masp, fosse viver com ele em Arles, para fundar uma cooperativa de artistas. Gauguin se juntou ao amigo por um curto e turbulento período de tempo. “Ele acreditava no progresso através da troca com outros artistas”, diz Veen.
Se Van Gogh estava plenamente consciente do que fazia, tampouco faz sentido a teoria de que ele não teria cometido suicídio, levantada em 2012 pela biografia “Van Gogh: A Vida”. Tanto para Veen quanto para Martinez, a história de que o pintor teria levado um tiro de dois rapazes e mentiu para acobertá-los é fraudulenta. Especialmente porque carece de evidências, enquanto comentários sobre a morte e uma certa descrença em relação a vida eram constantes nas cartas do artista.
Der Veen, que foi responsável por um grupo de estudos sobre o pintor no Museu D’Orsay, também questiona a ideia de que Van Gogh nunca foi reconhecido em vida. “Ele morreu jovem”, diz, e pouco antes do suicídio, estava vendendo suas obras e foi reconhecido pela crítica em jornais importantes.
“O reconhecimento do século 19 era mais lento. A cor não chegava aos lugares como hoje, as impressões eram em preto e branco, e precisavam viajar a cavalo até os grandes centros”, argumenta Veen.
“O fato é que boa parte de suas crises tinham a ver com as condições de vida que ele tinha”, argumenta Martinez. “A dificuldade de ser aceito pelo mundo, de ter uma vida amorosa e profissional, dadas as condições que lhe foram impostas. Poderíamos facilmente imaginar uma pessoa na modernidade passando por isso.”
Não é difícil se identificar com as felicidades e angústias relatadas nas cartas, o que ajuda a explicar como Van Gogh se tornou um símbolo da cultura pop. “Ele tinha um propósito e ao mesmo tempo era vulnerável. Qualquer um pode apreciar seu trabalho, porque ele é feito de símbolos universais, como flores, o vento, as luzes, o céu. São coisas banais, mas ele às torna incríveis”, diz Veen.
“Andei por esse mundo por 30 anos para deixar em forma de gratidão uma lembrança em desenho ou pintura”, escrevia Van Gogh em uma de suas últimas cartas a Theo. “Não para agradar um ou outro movimento, mas para expressar um sentimento sincero”. O reconhecimento cabe bem ao pintor que viu a arte como uma missão.
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress