SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sob indícios de falhas que agravaram os efeitos da cheia histórica do Guaíba, o sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre recebeu 23% a menos do orçamento destinado à manutenção dos equipamentos nos últimos sete anos.
No período, dos R$ 21,5 milhões previstos para o serviço, foram gastos R$ 16,4 milhões, segundo dados da Transparência da gestão Sebastião Melo (MDB) são R$ 5 milhões de diferença; os valores foram atualizados pela inflação.
A capital gaúcha, assim como boa parte do Rio Grande do Sul, enfrenta consequências da maior inundação da história, que deixou mais de 140 mortos, centenas de feridos e 446 municípios afetados.
A manutenção dos equipamentos dos diques, comportas e sistemas de bombeamento de água pluvial da cidade é feita pela Bombas Sinos Indústria e Comércio Ltda desde 2017, quando foi assinado contrato na gestão do ex-prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB) com repasses anuais de R$ 2,6 milhões, em média.
O contrato foi aditado pelo atual prefeito, Sebastião Melo (PSDB), que também não despendeu a totalidade do orçamento previsto para o serviço. Em 2023, foram gastos 73% do R$ 4,2 milhões previstos.
A gestão Melo foi procurada pela reportagem por telefone, mensagem de texto e email para comentar, mas não respondeu. A empresa citada também não retornou após ter sido procurada por email.
Entre os problemas decorrentes das falhas de manutenção citadas por engenheiros hídricos e ambientais, estão o rompimento de uma comporta e paralisação do sistema de bombeamento, que permitiu a entrada de água no centro histórico.
“A parte fixa do sistema que requer menos manutenção, como o muro da Mauá, funcionou bem, mas a parte móvel não. Foi uma cadeia de problemas e uma falha gerou a outra”, diz Rodrigo Cauduro De Paiva, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IPH/UFRGS). “[O sistema] funcionou em atrasar a cheia, mas tem que colocar muito mais energia para mantê-lo em funcionamento”, continua.
Porto Alegre tem cerca de 35% do território urbano a três metros acima do nível do mar e, portanto, bem próximo da altura dos 27 córregos que passam pela cidade, além de trechos do rio Gravataí, lago Guaíba e lagoa dos Patos.
O sistema de drenagem foi construído na década de 1960 e É formado por um muro de 2,6 km de extensão, com 14 comportas de proteção e 23 estações de bombeamento de águas pluviais, conhecidas como casas de bombas de drenagem.
Essas estações são espalhadas pela cidade e abrigam reservatórios que servem como estruturas hidráulicas artificiais para drenar a água da chuva da cidade para o Guaíba. O lago, por sua vez, é margeado por um muro de 2,65 km de extensão com 14 comportas de proteção, acionadas em casos de emergência.
As 14 comportas foram fechadas no último dia 2, quando o nível do Guaíba atingiu a cota de inundação, de três metros. Naquele dia, o Rio Grande do Sul vivia o quarto dia após as chuvas intensas que atingiram o estado. Na manhã seguinte, porém, parte do centro histórico inundou, apesar de a água não ter se sobreposto aos seis metros de altura dos muros de contenção até o momento, o máximo atingido foram 5,3 metros no último dia 7.
O alagamento extravasou no centro por meio da casa de bombas 17, localizada na avenida Mauá. O equipamento tem uma comporta que deveria escoar por ação da gravidade as águas que chegaram ao reservatório em direção ao Guaíba.
“Essa comporta aparentemente não estaria instalada, ou então, tentaram instalá-la e o seu acionamento falhou por alguma razão”, diz o engenheiro Gino Gehling, professor do IPH/UFRGS. “Por meio disso, nós tivemos um refluxo muito significativo de águas do lago invadindo o pôlder, a área a ser protegida”, continua.
Com isso, o mecanismo de bombeamento entrou em colapso, e algumas casas de bomba tiveram que ser desligadas, como a localizada próximo da avenida Aureliano de Figueiredo, no centro histórico, no último dia 6. Das 23 casas de bombas de Porto Alegre, quatro continuaram em funcionamento nos primeiros dias após a inundação.
“As atividades de manutenção deficientes foram a principal causa da inundação da área a ser protegida”, diz Gehling. “Isso não deve ser atribuída única e exclusivamente à atual administração municipal. A falta de atenção com relação à manutenção do sistema vem se repetindo ao longo das diversas administrações.”
No mesmo dia em que o centro histórico ficou submerso de uma hora para outra, outra falha atingiu 1 das 14 comportas de contenção à beira do Guaíba. A estrutura, localizada na zona norte da cidade, rompeu-se com a força das águas.
De acordo com Flavio Presser, integrante da Sociedade de Engenharia do Rio Grande do Sul, o portão já tinha apresentado problemas em cheias anteriores recentes. “Em uma das elevações de nível, foi constatado que houve vazamento de água, tanto que criaram um dreno para evitar novos alagamentos no bairro Humaitá”, diz ele. “Isso mostra que não houve manutenção adequada.”
Presser explica que a comporta perde a capacidade de conter vazamentos se a borracha vedante instalada entre o portão e o muro estiver desgastada. “É como uma porta de geladeira, se a borracha estiver ressacada ou rompida, não fecha.”
“Houve problemas operacionais. Ao longo do tempo, as pessoas achavam que não iam acontecer mais enchentes”, diz Presser.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul afirmou que vai instaurar inquérito para apurar a situação do sistema antienchentes, segundo o promotor Felipe Teixeira Neto, de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre, em declaração divulgada pelo jornal Sul 21 nesta segunda (13).
Instalado na capital gaúcha na década de 1970, o Sistema de Proteção Contra Inundações foi projetado após as enchentes de 1941, até então, a referência de maior cheia da cidade, quando o Guaíba chegou a 4,75 metros.
Passaram-se, portanto, oito décadas desde a última grande inundação e, a maior parte da população, desconhece a importância dos diques e comportas ao longo da avenida Mauá, uma das principais da cidade. “Devia ter sido feito um projeto de publicidade para mostrar aos moradores como o sistema funciona para darem valor”, diz Presser.
A retirada de parte do muro de contenção foi discutida pela atual gestão municipal e também pelo governador Eduardo Leite (PSDB). A proposta consta em projeto de concessão à iniciativa da revitalização do Cais Mauá, patrimônio histórico e cultura da cidade. O contrato que previa um novo sistema de contenção em substituição aos muros foi suspenso pelo governo estadual nesta terça.
MARIANA ZYLBERKAN / Folhapress