SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após o presidente de Portugal reconhecer a responsabilidade do país por crimes no período da escravidão e a Comissão de Anistia conceder um perdão inédito a povos indígenas no Brasil, o debate sobre reparação histórica voltou à agenda política.
A cobrança por medidas concretas ecoou no Congresso, no governo e entre especialistas –embora sem passos reais para viabilizá-las com políticas públicas.
Às vésperas das manifestações em memória da Revolução dos Cravos, o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, falou em reparar e arcar com os custos pela escravidão. Não especificou, porém, como seria o processo nem apresentou um pedido formal de desculpas.
Três dias depois, o primeiro-ministro, Luís Montenegro, negou qualquer intenção de avançar com um “processo ou programa de ações específicas” relacionados à reparação das ex-colônias. Mas afirmou que dará continuidade à atuação dos governos anteriores em matéria de cooperação com esses Estados.
A declaração do presidente português foi dada semanas depois de, no Brasil, a Comissão da Anistia conceder pedidos inéditos de perdão coletivo aos povos guarani-kaiowá e krenak, pela violência que sofreram do Estado durante a ditadura militar e em outros períodos (de 1946 a 1988).
Os dois casos provocaram reações de ministros do governo Lula (PT).
Em entrevista à Folha de S.Paulo, Joenia Wapichana, presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), afirmou que os povos indígenas precisam mais do que um pedido de perdão. “[São necessárias] medidas de reparação ambiental, territorial e social. Além de mostrar para a sociedade brasileira tudo que ainda não se conhece, porque não foram apenas 8.350 vítimas da ditadura militar, existe muito mais. Precisamos conhecer a verdade relacionada aos povos indígenas.”
Após a declaração do presidente português, a ministra da Igualdade Racial do Brasil, Anielle Franco, se pronunciou e pediu “ações concretas” sobre os danos da escravidão. Ela disse que estava “em contato com o governo português para dialogar sobre como pensar essas ações e [decidir] quais passos serão tomados”.
Em nota, o ministério afirmou que “os diálogos com o governo português serão conduzidos pelo centro de governo, com o apoio do MIR, e pelo Itamaraty”.
No Congresso, o deputado Max Lemos (PDT-RJ), membro da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara, disse que protocolaria a criação de uma subcomissão especial para acompanhar as possíveis negociações de um acordo bilateral de reparação de Portugal com o Brasil.
“Nessa subcomissão também vai ter o levantamento de todos os crimes cometidos, o que a população perdeu, o que a nação perdeu. E daí [vamos] definir como é que faz essa compensação”, afirmou.
Ele disse ainda que a primeira ação após a criação do grupo especial será procurar a ONU (Organização das Nações Unidas) para pressionar pela criação de um tribunal para examinar a escravidão e o colonialismo, além de concretizar um fundo de reparação.
A deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ), que integra a bancada negra no Congresso, diz haver um ponto fundamental, que é o Estado brasileiro reconhecer formalmente o que foi a escravidão no Brasil –e, a partir disso, pensar em políticas reparatórias.
Para a parlamentar, o mais importante seria avançar em duas frentes: políticas de reparação econômica e de memória.
A reparação econômica se daria por medidas de transferência de renda. Ela sugere acionar os bancos, como o Banco do Brasil e o BNDES, para pensar em financiamento de projetos que envolvam a mobilidade social da população negra.
Já a memória, segundo ela, produz verdade e justiça. “[É preciso] desde a substituição de estátuas que homenageiam escravocratas até a produção de espaços, como museus, que valorizem a história da África e denuncia o período da escravidão.”
A deputada disse ainda que esteve no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU, em abril, em Genebra, representando a bancada negra, e o tema principal que permeou os debates foi o da reparação.
“Queremos fazer um grande seminário, inclusive na Câmara de Deputados, envolvendo o Senado, para discutir desenvolvimento econômico e reparação para população negra”, disse.
O deputado Baleia Rossi (MDB-SP), também integrante da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, afirmou ser difícil apontar que medidas Portugal deve tomar para o processo de reparação, pois seria importante conhecer melhor o contexto atual da política do país.
Do ponto de vista simbólico, ele avalia que foi importante a fala do presidente português para estimular outros países a refletir sobre o assunto.
“As reparações precisam existir por meio de políticas que combatam o racismo, que é a principal chaga deixada pela escravidão. Além disso, ter mais políticas para o aumento da população negra nos espaços de poder.”
Para Talíria, a mesma cobrança feita por Joenia para os povos indígenas vale para a população negra. “O perdão é importante porque é um reconhecimento do horror que foi a escravidão, mas não incide sobre as consequências concretas na vida da população negra.”
A historiadora Ynaê Lopes dos Santos diz que não vê como uma boa ideia um pedido de desculpas por parte de Portugal, porque significaria uma não culpa. Para ela, o que se precisa é de responsabilização.
Segundo a historiadora, junto com o reconhecimento público dos crimes cometidos é preciso discutir com os movimentos sociais uma agenda de políticas reparatórias.
“Os movimentos sociais estão fazendo política o tempo todo. Na grande parte das vezes contra-hegemônicos e que são fundamentais para a promoção de políticas reparatórias.”
Ynaê afirma ainda que ações de reparação podem ser um caminho para o combate ao racismo, mas é preciso definir melhor essas políticas.
“Há movimentos que estão pedindo indenização. Eu sou filha de um ativista do movimento negro que, na década de 90, iniciou esse movimento de política de reparação e havia uma conta feita de quanto o Estado deveria pagar para cada descendente no Brasil. Existe esse caminho, mas dificilmente será feito.”
Ela afirma que a política de reparação parte do pressuposto do reconhecimento da própria existência do racismo. E isso para o Brasil, sobretudo, já é um ganho significativo porque o racismo no país não é visto como um problema historicamente.
A historiadora afirma que transformações efetivas ocorrerão quando a questão racial for tomada na sua centralidade. Enquanto isso não acontecer, ocorrerão mudanças pontuais, e não como uma política reparatória exige.
PRISCILA CAMAZANO / Folhapress