Posição de chefe da Marinha sobre João Cândido ignora desigualdade racial no país

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A posição do chefe da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, contrária a homenagem a João Cândido, líder da Revolta da Chibata (1910), ignora a desigualdade racial ainda persistente na sociedade brasileira, afirmam especialistas.

Apesar de tocar em um tema caro para a Marinha –a hierarquia–, o episódio foi importante para a história nacional e traz reflexão necessária para a sociedade brasileira sobre o racismo.

João Cândido foi líder da Revolta da Chibata, motim ocorrido no Rio de Janeiro em 1910 conhecido, sobretudo, pelo combate a castigos físicos feitos contra os marinheiros. Com o passar dos anos, Cândido e a revolta se tornaram símbolos nacionais contra o racismo.

Na segunda-feira, 22, Olsen condenou, em carta enviada à Câmara dos Deputados, o projeto de lei que visa incluir o personagem histórico em livro de heróis e heroínas da Pátria. Ele falou em “reprovável exemplo” e disse que os participantes da insurgência eram “abjetos marinheiros”.

O PL é de autoria do parlamentar Lindbergh Farias (PT-RJ) e relatado por Benedita da Silva (PT-RJ).

Para Álvaro Pereira do Nascimento, professor titular de história da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e autor de uma biografia sobre João Cândido, a inclusão do líder histórico no livro de heróis da Pátria é importante para o país, ainda marcado pelo racismo.

“Na historiografia, a ideia de um herói ou heroína é controversa. Entretanto, não ter essas pessoas [negras, mulheres] nesses livros é reservá-los somente a homens brancos”, diz.

Ele afirma que a revolta teve um caráter propositivo e foi além da mera reação aos castigos físicos. Propunha, por exemplo, a retirada de oficiais violentos, a revogação do código disciplinar que permitia o castigo corporal e medidas de educação para os marinheiros de comportamento reprovável.

Segundo Nascimento, embora tenha impactado aspectos caros para a Marinha, como a hierarquia e a disciplina, o evento também precisa ser visto a partir do aspecto racial, uma vez que a maioria dos oficiais era branco, enquanto os marinheiros eram majoritariamente pretos e pardos.

“Fazia 22 anos de libertação da escravidão e oficiais reprimiam marinheiros com castigos corporais. Neste contexto, Cândido foi alçado ao cargo de almirante, chamado popularmente de almirante negro”.

A “promoção” a almirante se deu em razão do apoio popular, mas o líder nunca chegou a ser de fato promovido ao posto.

Segundo Andersen Figueiredo, mestre em História da África pela UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), a resistência em considerar Cândido um herói da Pátria revela o racismo ainda persistente na sociedade brasileira.

“Ele já deveria ter sido incluído no livro. Cândido foi um dos ícones da luta contra o racismo da época”, afirma. O especialista lembra que, no início do século 20, os negros continuavam, em alguns contextos, sofrendo castigos similares ao que ocorria no tempo da escravidão.

“João Cândido teve a coragem de denunciar os castigos que os marinheiros sofreram. Falou sobre não poderem suportar a escravidão persistente na própria Marinha brasileira”, afirma Figueiredo.

Para Francisco Phelipe Cunha Paz, historiador e doutorando em história pela Unicamp, o reconhecimento de João Cândido entre os heróis nacionais é esforço necessário para contar a história de uma parte do Brasil “violada e violentada” desde o início da colonização.

“João no panteão da Pátria é ao mesmo tempo uma lembrança-denúncia do racismo como base de sustentação da história desse país. É também uma forma de combate e reparação ao racismo”, afirma.

Segundo Ynaê Lopes dos Santos, professora do departamento de história da UFF (Universidade Federal Fluminense), um conjunto de razões justifica a inclusão de João Cândido no livro de heróis da Pátria, como o fato de ele ser um homem negro em um contexto no qual a ideia de herói construída na história do Brasil faz referência a apenas homens brancos.

Além disso, a entrada dele no livro ajudaria a jogar luz sobre a maneira como a história militar vem sendo contada. “É uma maneira ordenada pelo racismo. Então, os sujeitos protagonistas geralmente são brancos, o que silencia não só a participação desse sujeito de baixa patente, mas também das próprias tensões existentes dentro da experiência militar”, afirma.

ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA / Folhapress

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