SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Antes de se criar um sonho, é preciso que exista a possibilidade de sonhar. Por muito tempo, meninas negras nem pensavam em estar em uma novela da Globo, ainda mais em serem protagonistas da trama. Quem abriu as portas foi Taís Araujo, em 2004, quando estrelou “Da Cor do Pecado”. Vinte anos se passaram e, a julgar pelo momento atual, a história na teledramaturgia brasileira vem, finalmente, sendo reescrita.
O mês da Consciência Negra começa abrindo portas para o futuro: pela primeira vez, três mulheres pretas protagonizam as três tramas da emissora mais assistida do país. Duda Santos (“Garota do Momento”), que fez sua estreia na última segunda-feira (4), Jéssica Ellen (“Volta por Cima”) e Gabz (“Mania de Você”) emocionam e divertem milhares de famílias em suas respectivas novelas na Globo.
A intérprete de Viola, uma chef de cozinha renomada na novela das 21h, diz viver uma realidade que nem havia sido sonhada por aqueles que vieram antes dela: “Realizar esse sonho diante da minha avó e de gerações da minha família, que talvez nunca imaginaram essa possibilidade, é algo realmente especial”.
Em 2023, Barbara Reis, Sheron Menezzes e Diogo Almeida já haviam partilhado a negritude no protagonismo das novelas “Terra e Paixão”, “Vai na Fé” e “Amor Perfeito”. Contudo, foi só em 2024 que três mulheres passaram a ocupar o posto simultaneamente, o que talvez aumente ainda mais a sensação de responsabilidade entre elas.
“Quando tocamos a vida de pessoas que nunca tiveram essa representatividade, causamos uma grande mudança, e isso precisa ser feito da melhor maneira possível”, diz Gabz, que não nega estar cumprindo um desafio diante do passado de seu povo. “Acredito que nossos ancestrais estão olhando por nós e que precisamos honrá-los.”
Jéssica, intérprete de uma jovem que precisa assumir a liderança de uma família inteira na novela das 19h, lembra que estamos sendo vistos não só por nós mesmos, mas por todo o mundo. “Teve uma demora para que a televisão brasileira retratasse de fato a diversidade que o nosso país tem. Se a gente olha um tempo atrás, existiam novelas que passavam fora do país, e isso [a falta de diversidade] era o que era posto e exposto”.
Certamente não era a realidade brasileira, em que 55,5% da população se declara preta ou parda (segundo o Censo do IBGE 2022), que vinha sendo exposta nas novelas.
E por trás das telas, as mudanças foram ainda mais lentas, segundo conta a atriz. Jéssica lembra de uma participação em que foi gravar com seu cabelo crespo solto e passou por uma situação incômoda com o profissional que estava à frente do set.
“O diretor perguntou para atriz que estava contracenando comigo, que era uma veterana, o que ela achava do meu cabelo, se não achava que eu tinha que prender”, diz.
“Aquilo para mim foi de uma violência absurda, porque ele perguntou para outra pessoa, que era uma mulher branca, o que ela achava sobre o meu cabelo, ao invés de perguntar para mim, mesmo eu já tendo defendido na caracterização, na prova de figurino”.
As atrizes ressaltam que também importa como pessoas negras são retratadas nas telas, muitas vezes em papéis de pobreza, violência ou bandidagem. “Nossa sociedade se acostumou a desumanizar corpos negros, desde operações policiais nas favelas, onde pessoas negras inocentes morrem, até a naturalização da presença de negros em situação de vulnerabilidade”, diz Gabz.
No capítulo da última segunda-feira (5) de “Mania de Você”, Viola ofereceu um trabalho a Duh (Ivy Souza) como chef pâtissier do sofisticado restaurante Voilá Violeta. Doceira de mão cheia, mas desvalorizada dentro da própria casa, ela nem sonhava em conseguir um cargo formal na cozinha do restaurante renomado. A personagem de Gabz teve o papel de abrir os horizontes da nova colega de trabalho.
Ela conta que leva o exemplo da ficção para a sua vida. “Como atores, trabalhamos com o olhar do outro, e o audiovisual tem o papel de educar esse olhar. Precisamos humanizar cada vez mais e trazer afeto para os corpos negros”, opinou a atriz.
Ambas acreditam que muito trabalho já foi feito, mas ainda há muito mais a fazer. “Esse é o caminho de prosperidade e de um futuro inteligente no audiovisual. É daí para frente”, finaliza Jéssica.
LUÍSA MONTE / Folhapress