SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Após nove meses de discussão, a Justiça Federal decidiu dar continuidade a uma ação inédita das indústrias aeronáutica e defesa nacionais contra a política de contratação de engenheiros brasileiros da gigante americana Boeing, uma disputa com implicações geopolíticas que envolveu o governo Lula.
Na semana passada, a 3ª Vara Federal de São José dos Campos (SP) decidiu que o processo para descobrir se os americanos estão praticando concorrência predatória no polo aeroespacial da cidade, encabeçado pela Embraer mas que inclui dezenas de empresas menores, deve avançar para a fase de produção de provas e testemunhos.
Segundo estimativas do mercado, cerca de 400 pessoas, a maioria formada por engenheiros, foram contratados desde o começo de 2022 pela Boeing em São José. Dessas, ao menos 120 eram da Embraer, que tem cerca de 3.500 profissionais na engenharia.
Em setembro do ano passado, César Silva, o presidente da empresa de engenharia de ponta Akaer, queixou-se da perda de quadros para a Boeing na rede LinkedIn. “Estilo de predador”, definiu nas postagens.
Ato contínuo, a Abimde (Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Defesa) e a AIAB (Associação das Indústrias Aeorespaciais do Brasil) entraram com uma ação, em 22 de novembro, buscando interromper a contratação em termos draconianos.
Ela buscava limitar, por meio liminar (decisão provisória), a aquisição a 0,6% do corpo de engenharia de empresas estratégicas de defesa ou com com contratos em projetos do tipo. Também previa R$ 5 milhões em multa para a Boeing, a serem repassados para instituições de ensino na área aeronáutica.
“É uma questão de soberania, não de protecionismo. A Boeing tem faturamento equivalente a 1/3 do PIB industrial brasileiro”, diz o presidente da Abimde, Rogério Gallo. Ele lembra que a livre concorrência é assegurada, nos termos do artigo 170 da Constituição, mas que é relativizada em nove situações específicas -a primeira delas, questões de soberania nacional.
A Embraer é a maior fornecedora de equipamento militar para a Força Aérea Brasileira. Está no coração dos dois principais programas da Aeronáutica, o avião de transporte KC-390 que desenhou e produz, e em parceria industrial com a Saab sueca na construção do caça Gripen -para o qual a Akaer, que tem participação dos estrangeiros, fornece sistemas sensíveis.
Isso dito, há a questão da livre concorrência e da abertura do mercado. Questionado sobre o avanço da ação, o presidente da Boeing para América Latina e Caribe, Landom Loonis, cautelosamente evitou entrar na questão judicial, mas ressaltou o recado sobre o ambiente de negócios.
“O Brasil é líder na América Latina com estabilidade social, econômica e financeira e, portanto, um destino para investimentos de longo prazo. No caso da Boeing, temos demonstrado nosso compromisso com o Brasil investindo nas áreas de sustentabilidade, iniciativas de segurança e colaboração com agências reguladoras”, disse.
Aqui que o caldo engrossa do ponto de vista político. No início do ano, instado a se manifestar no processo pela AGU (Advocacia Geral da União), o Ministério da Defesa não demonstrou interesse na causa. Com isso, o juiz Renato Barth Pires declarou-se incompetente e enviou os autos para a Justiça estadual.
As associações recorreram e anexaram ao processo uma nova manifestação, do MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio), afirmando haver risco de sangria de cérebros da chamada BID (Base Industrial de Defesa). Com isso, a ação permaneceu sendo instruída na Justiça Federal, ainda que em junho o juiz tenha negado a liminar do caso.
A nota técnica 270 foi despachada pela secretária-executiva adjunta da pasta comandada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), Aline Schleicher, em 11 de abril deste ano. No dia 29 do mesmo mês, o chefe de Aline, o secretário-executivo Márcio Rosa, foi eleito como um 1 dos 11 integrantes do Conselho de Administração da Embraer.
Ele é membro independente, não indicado pelo governo, caso do brigadeiro Pedro Luís Farcic, que é o responsável pela gestão da “golden share”, a ação preferencial que dá poderes de veto à União na empresa que foi estatal de 1969 a 1994.
O MDIC nega conflito de interesses. “O ministério não é parte na ação. A matéria não diz respeito à competência administrativa da Secretaria Executiva”, disse a pasta, defendendo a redação da nota “em apoio ao fortalecimento e manutenção do ecossistema de inovação da base industrial de defesa”.
Questionada novamente pela AGU, desta vez especificando se havia perda de empregos na base industrial do setor, a Defesa mudou de posição. Foi um parecer técnico, dado pela Secretaria de Produtos de Defesa, sem o conhecimento do ministro José Múcio –algo que agora irá mudar, já que sua pasta surge como parte no processo.
Isso leva a considerações políticas também. Segundo pessoas ligadas ao Departamento de Estado dos EUA, o caso é acompanhado com atenção. O governo Joe Biden não perdoa Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pelo que considera ingratidão por suas posições antiamericanas após o apoio dado por Washington à transição democrática em 2022.
Para Julio Shidara, presidente da AIAB e co-autor da ação, é essencial a participação do Estado brasileiro na causa. “Já não falamos mais da indústria aeronáutica, é sobre o talento brasileiro. Temos de nos preocupar com o engenheiro, o salário dele, mas ele é só uma face de um cubo mágico [de fatores envolvidos]”, afirmou.
O Brasil estava na mira da gigante americana desde 2017, quando ela fez uma oferta de US$ 4,2 bilhões (US$ 5,2 bilhões hoje, ou R$ 25,8 bilhões) pela divisão de aviação comercial da Embraer, a terceira maior fabricante de aviões do mundo. O governo, que tem poder de veto em decisões estratégicas por ter sido dono da Embraer de 1969 a 1994, liberou o negócio.
Além dos produtos, a Boeing buscava absorver o corpo de engenharia da brasileira, considerado um dos mais dinâmicos do mercado, num momento em que patinava com um projeto de aeronave de porte médio. Desde sua privatização, ela renovou seus quadros com 1.700 pessoas formadas em parceria com o ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica).
O casamento não deu certo. Pressionada pela pandemia e pela crise de seu principal produto, o 737 MAX que passou quase dois anos no chão devido a problemas de projeto que levaram a dois acidentes fatais, a Boeing alegou que a Embraer não estava cumprindo seus prazos na parceria e encerrou o processo.
Os brasileiros acionaram os americanos na corte de arbitragem de Nova York, buscando indenizações. Até aqui, a Embraer já gastou R$ 981 milhões, em valores corrigidos, com o processo de integração e de separação com a Boeing.
A empresa não comenta a arbitragem, assim como os americanos, e é comedida em relação à ação das associações, ressaltando ser associada delas e não parte do processo, uma forma de tentar evitar os holofotes.
Repetiu à Folha de S.Paulo o que havia dito ao site Infomoney em março: “A Embraer apoia a livre concorrência. Cooptação de profissionais altamente qualificados coloca em risco a sobrevivência dessas empresas [da base de defesa] e, sobretudo, ameaça a soberania nacional. A ação busca proteger uma indústria vital”.
A entrada mais assertiva da Boeing no Brasil faz parte de uma estratégia global. Após o fechamento do escritório russo (640 engenheiros) devido à Guerra da Ucrânia e às dificuldades com a operação em Kiev (580 engenheiros), a empresa passou 2022 buscando talentos em outros lugares.
Fechou o ano, segundo reportagem do Seattle Times que garantiu a seu autor, Dominic Gates, o convite para depor na ação no Brasil, com 350 engenheiros no Brasil. Segundo a Folha de S.Paulo ouviu de pessoas com conhecimento do assunto, o plano é chegar a 1.500 no Brasil. Na Índia, 2022 registrou 1.106, que poderão ser 3.000 com a expansão de seu centro de engenharia.
“O Brasil é parte da estratégia global, e de longo prazo, da Boeing. O Centro de Engenharia e Tecnologia da Boeing no país integra uma rede de 15 centros em todo o mundo que desenvolvem tecnologia de ponta para impulsionar a inovação aeroespacial. Hoje, cerca de 15% dos nossos 17 mil engenheiros estão fora dos EUA”, afirmou o vice-presidente sênior e estrategista-chefe da Boeing, Marc Allen.
Ele conhece o caso da Embraer, tendo sido o presidente da frustrada joint-venture de aviação comecial que se chamaria Boeing Brasil. Allen diz que o país pode ser central na cadeia produtiva da aviação. “Prevemos uma demanda global por aviões comerciais avaliada em US$ 8 trilhões nos próximos 20 anos, e o que queremos é inserir o Brasil nesse mercado” afirmou.
Seu colega Loonis diz que a empresa está há mais de 90 anos no Brasil. “Estamos gerando emprego e renda no Brasil, especialmente em São José dos Campos, onde estamos sediados, e inclusive repatriando muitos brasileiros que buscavam retomar sua carreira no Brasil”, afirmou.
IGOR GIELOW / Folhapress