SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Antes de seguir a carreira jurídica, Maria Paula Dallari Bucci tentou a psicologia, mas não gostou da faculdade e desistiu no primeiro ano. Enquanto pensava o que fazer da vida, trabalhou como “office girl” no escritório de advocacia de seu irmão mais velho e se encontrou. “Adorei aquilo”, lembra.
Entrou na Faculdade de Direito da USP, onde se apaixonou por tudo desde seu período de caloura. Era 1983, e a campanha das Diretas Já se insinuava como ponto final da ditadura militar (1964-1985).
Nos anos seguintes, o mundo jurídico fervilhou com debates sobre a Constituição, que seria promulgada em 1988. Filha de Dalmo de Abreu Dallari, figura com atuação destacada na defesa dos direitos humanos, Maria Paula carregou a influência daquela virada.
“A minha geração é a geração da Constituinte. A gente tinha um sentido de construir o Brasil, de implantar a democracia. Era manhã, tarde e noite”, diz Maria Paula, 60, que é professora da USP.
Quase quatro décadas depois daquela fase estudantil, ela se viu de novo frente a frente com a democracia; não mais para instituí-la, e sim defendê-la do então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Ao lado de Ana Elisa Bechara, Eunice de Jesus Prudente e Flávio Bierrenbach, ela leu a “Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito”, em ato no dia 11 de agosto de 2022.
Foi, de certa forma, o reconhecimento de sua longa dedicação ao direito do Estado e, mais especificamente, ao direito das políticas públicas, área em que é uma das pioneiras e principais referências no Brasil.
Ela também tinha bastante cartaz interno por ter comandado, alguns anos antes, a modernização do projeto pedagógico da faculdade.
Pelos mesmos motivos, alunos e ex-alunos da USP têm feito lobby para ela ser nomeada para o STF (Supremo Tribunal Federal) na vaga da ministra Rosa Weber, prestes a se aposentar.
“O STF teve papel fundamental na defesa da democracia. E isso não está terminado”, afirma. Cita como exemplo a votação do PL (projeto de lei) das Fake News, quando as chamadas big techs agiram para influenciar o processo legislativo.
Ela considera que o país está pronto para um novo passo, de calibragem das instituições e reflexão sobre a função que devem exercer a partir de agora: “Chegamos a uma espécie de idade madura da democracia”, diz.
Maria Paula fala com conhecimento de causa. Em sua trajetória, sempre procurou unir a compreensão abstrata do direito do Estado com vivências jurídicas concretas. “Eu acho que é falsa a divisão entre teoria e prática no direito”, afirma.
Suas primeiras experiências profissionais até foram na iniciativa privada: um estágio na Johnson & Johnson, uma passagem pelo escritório de Eros Grau que depois se tornaria ministro do STF e uma breve tentativa de ter a própria banca.
Não demorou, entretanto, para trabalhar dentro do Estado. Enquanto terminava o mestrado sob supervisão de José Afonso da Silva, atual decano do direito constitucional brasileiro, recebeu um convite de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, um dos maiores nomes do direito administrativo.
“Eu era procuradora-chefe da Consultoria Jurídica da USP quando convidei a Maria Paula para ocupar o cargo em comissão de procurador assessor”, diz Maria Sylvia. “Já conhecia suas qualidades de aluna, sempre atenta, assídua e dedicada”, completa.
Três anos depois, em 1995, Maria Paula começou o doutorado, tendo Maria Sylvia como orientadora.
“[Maria Paula] elaborou e defendeu excelente tese de doutorado dentro do tema de políticas públicas, ainda pouco tratado na época. Quase não precisou de orientação, porque estava muito firme em suas convicções”, afirma Maria Sylvia.
O vínculo de Maria Paula com a procuradoria da USP só terminou 25 anos depois de ter iniciado, mas foi interrompido diversas vezes. Assim como inúmeros outros quadros vinculados ao PT, ela partiu para Brasília quando Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito em 2002.
Inspirada pela história do pai, “uma escola em todos os sentidos”, sentia que não se tratava de simples trabalho: “Tinha um quê de militância, um sentido de causa pública”.
Sua missão inicial foi como procuradora-geral do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), de 2003 a 2005. Daí migrou para o MEC (Ministério da Educação), onde atuou como consultora jurídica (2005 a 2008) e secretária da Educação Superior (2008-2010).
O ministro na época era Fernando Haddad, hoje à frente da Fazenda. Os dois tinham sido colegas de faculdade e se tornaram muito próximos ela foi madrinha de casamento dele.
Mas Maria Paula não ficou até o final do mandato do amigo. Voltou para São Paulo, assumiu a assessoria jurídica da Agência de Inovação da USP, depois a procuradoria-geral da USP e a superintendência jurídica da USP.
Em todos os cargos, deixou marcas claras: cuidou do redesenho institucional, redefiniu atribuições, organizou o cipoal normativo, fortaleceu a estrutura do Estado.
Para não largar a reflexão, acumulou as atribuições com aulas em instituições privadas e, a partir de 2013, na USP. Foi aprovada em uma banca composta, entre outros, por Ricardo Lewandowski, então ministro do STF, e Alexandre de Moraes, que se tornaria ministro quatro anos mais tarde.
Também publicou livros, e um deles, “Fundamentos para Uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas” (Saraiva, 2013), ficou em terceiro lugar no Prêmio Jabuti.
Sua quilometragem teórica e prática a tornou cobiçada por alunos da pós-graduação. Foi o caso de Guilherme Varella, gestor público e atualmente professor da Universidade Federal da Bahia.
Varella lista as qualidades que o levaram a procurá-la no doutorado: proeminência no campo do direito e políticas públicas, fama de ser orientadora rígida e atenciosa, experiência no MEC. “E de esquerda, né? Que não é uma coisa muito comum ali”, afirma.
“Ela até passa a imagem de ser sisuda. Mas ela tem um senso de humor refinado, é divertida”, diz. Organizador dos blocos de Carnaval Saia de Chita e Sainha de Chita, o aluno se surpreendeu mais de uma vez com a presença da mestra dançando em suas festas.
Maria Paula também se surpreendeu com alunos e alunas: aprendeu a importância do antirracismo e do feminismo, temas que não eram tão presentes em sua vida. Em 2003, por exemplo, achava que a igualdade feminina era uma questão de tempo.
“Mas o tempo passou e vi que não era. Eu não estava consciente disso”, reconhece. “Quanto mais a gente toma consciência, mais a gente vê que tem que ser ativa nessa luta.”
Sua trajetória talvez tenha retardado essa percepção. Teve seu primeiro filho, Mário, no quinto ano da faculdade, fruto de seu casamento, no ano anterior, com o jornalista Eugênio Bucci uma de suas paixões de caloura que duram até hoje. Quando estava no mestrado, nasceu Marta.
Em ambos os casos, contou com uma rede de ajuda familiar que lhe permitiu trabalhar e concluir os estudos sem diminuir o ritmo. Privilégio que, ela sabe bem, é para poucas.
Acostumada desde aquela época a acumular funções, Maria Paula começou a pisar no freio recentemente. Mas pisou de leve. Aceitou integrar o “Conselhão” de Lula e se prepara para o concurso de professor titular, na vaga de Lewandowski.
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RAIO-X | MARIA PAULA DALLARI BUCCI, 60
É professora da Faculdade de Direito da USP, com mestrado e doutorado pela mesma instituição, e coordenadora da Escola Superior Nacional de Advocacia Pública. Foi, entre outras funções, secretária de Educação Superior do Ministério da Educação (2008-2010), superintendente Jurídica da USP (2014-2017) e procuradora da USP (1992-2018). Entre outras obras, publicou “Fundamentos para Uma Teoria Jurídica das Políticas Públicas” (Saraiva, 2013).
UIRÁ MACHADO / Folhapress