SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O polêmico programa de digitalização do ensino na rede estadual paulista, proposto pelo governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), tem gerado críticas entre professores acerca de seus méritos pedagógicos e do conteúdo apresentado até aqui nos slides que norteiam as aulas.
Ao menos foi o que a reportagem constatou entre profissionais que lecionam geografia para alunos do Ensino Fundamental. Em escolas de uma importante cidade do interior paulista, questionamentos foram levados às direções.
Após ter acesso a um recorte, as nove aulas a serem apresentadas na forma de slides no terceiro bimestre para o 7º ano do Fundamental e uma do segundo bimestre do 9º, a reportagem as enviou, juntamente com as críticas feitas sob reserva por professores, para especialistas.
Foram constatados problemas, que a Secretaria da Educação negou parcialmente. Afirmou que respeita as diretrizes do chamado Currículo Paulista, que orienta a educação no estado, mas que os professores da rede têm autonomia para adaptar os conteúdos.
Os slides foram introduzidos a partir do segundo bimestre deste ano para os alunos dos ditos Anos Finais do Fundamental (6º ao 9º ano) e do Ensino Médio. No caso do primeiro grupo, o emprego deve ocorrer com a apostila Currículo em Ação e livros didáticos.
Aqui começam os problemas. Na ponta, os professores ainda não receberam as apostilas, que estão sendo elaboradas agora pela mesma equipe dos slides segundo a secretaria, 70 professores e especialistas em currículo sob o comando de Renato Dias, da Coordenação Pedagógica da pasta.
Além disso, os slides já estão em linha com a nova linha do governo, que abandonou as obras oferecidas pelo MEC no PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) a partir do ano que vem, de forma escalonada, alegando que elas eram inconsistentes. Assim, o conteúdo agora já não bate, e os novos livros que o estado pretende imprimir não estão disponíveis ainda.
Segundo professores da rede, que pediram anonimato por temer represálias, o problema se agrava porque há dissonância entre o conteúdo dos slides e o que está proposto na BNCC (Base Nacional Curricular Comum), a diretriz do MEC que é de adesão obrigatória pelos estados. Como a Folha de S.Paulo já mostrou, o processo está marcado por confusões.
No caso específico, os alunos do 7º ano deveriam estudar no terceiro bimestre correlações específicas de natureza territorial e a formação do Estado-Nação no Brasil. O foco do material é a evolução do capitalismo e da globalização, temas a serem desenvolvidos nos dois anos seguintes.
Ainda assim, os slides de um material isolado, a aula 1 do segundo bimestre do 9º ano, tratam do tema da globalização como se esperaria pela BNCC e pelo Currículo Paulista, mas com conceitos considerados obsoletos como tratar mercantilismo como fase econômica, algo vencido na década de 1980.
Professores de geografia de fora da rede, ao analisar o material, teceram críticas ao seu conteúdo. “Há um reducionismo de conceitos, até cômico em alguns casos”, afirmou Vágner Augusto da Silva, do Sistema Anglo na capital.
Ele cita menções isoladas ao “trust”, o truste significa as associações formais ou informais de empresas visando concentração econômicas. “Fica jogar por jogar”, afirmou ele, que também criticou a qualidade dos vídeos associados ao material e dos mapas, essenciais na geografia. “Eles não têm escala, não apontam o norte”, afirmou ele, que do lado positivo considerou as temática “adequadas”, “tentando dialogar com tecnologias”.
“O maior problema do material é que o conteúdo e os objetivos que eles apresentam não é alcançado. Há muitas inconsistências, parece que os slides foram feitos por equipes diferentes”, avaliou o professor de geografia Antônio Carlos de Carvalho, do Colégio Equipe, na capital.
Os slides não têm autoria, diferentemente do que ocorria com o material digital distribuído pela secretaria durante a pandemia de Covid-19. Até o questionamento feito pela reportagem, não se sabia nem a área responsável na pasta pelo material.
Por fim, mas não menos importante, há os aspectos pedagógicos. A preocupação central de educadores é a falta de retenção que o slide proporciona, estimulando na prática mais um copia-e-cola do conteúdo, além de questões práticas como a falta de acesso dos alunos à internet um dos motivos que fez Tarcísio e o secretário Renato Feder, objeto de investigação por ter contratos de sua empresa com o governo, recuarem da ideia do 100% digital.
“O simples fato de estar em meio digital não confere qualidade pedagógica ao material, muito menos significa que é inovador. Mais grave ainda, pode não garantir aquilo a que deveria ser propor: que todos os alunos aprendam”, afirma a pedagoga Anna Helena Altenfelder, doutora pela PUC-SP e superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
Ao analisar o material de geografia, ressalvando tratar-se de uma amostra, ela viu “lacunas importantes”. “As aulas são predominantemente expositivas sobre temas abstratos. O material não apoia o aluno a instigar os alunos a pensar”, afirmou.
“O tempo para as tarefas apontado é bem curto. O mesmo ocorre no trabalho coletivo: geralmente sugere-se conversar com o colega ao lado. Uma das propostas é elaborar um glossário para 13 conceitos bem complexos, como lucro e monopólio, em 10 minutos”, diz.
“Isso com a sugestão de usar um dicionário como apoio. A chance de os alunos copiarem do dicionário sem entenderem o conceito é grande”, afirmou, citando que as atividades propostas nos livros que serão agora abandonados do PNLD trazem incentivos à pesquisa, a trabalhos em duplas ou trios. Altenfelder também critica “mapas e infográficos escassos” e de qualidade “que deixa a desejar”.
OUTRO LADO: SECRETARIA DIZ QUE PROFESSOR É AUTÔNOMO
Questionada acerca dos pontos de crítica na tarde de quinta (10), a Secretaria da Educação emitiu uma nota em que enfatizou a autonomia dos docentes.
“Os conteúdos são pautados no Currículo Paulista e nos documentos legais e normativos nacionais vigentes e em referências didático-metodológicas, reconhecidos no Brasil e no mundo. Cabe ao professor realizar ajustes nas atividades propostas, se julgar necessário, de acordo com o tempo previsto para cada aula, visto que os conteúdos podem ser editados pelo professor, conforme a realidade da escola e de suas turmas”, afirmou o texto.
Ela afirma que o Currículo Paulista para os Anos Finais em geografia “foi elaborado à luz da BNCC, visando a progressão e a consolidação das aprendizagens”, citando então as chamadas habilidades previstas na base para o terceiro bimestre do 7º ano que tangenciam o capitalismo e a globalização.
“Os conteúdos associados a essas habilidades são imprescindíveis para que o estudante amplie o seu repertório sobre os elementos do território brasileiro, ao longo do tempo, e que estabeleça relações com outras escalas geográficas”, afirma o texto, sem explicar a ausência dos temas específicos sobre Brasil previstos na base.
Acerca dos mapas, “no conjunto de 32 aulas [o ano todo], é possível encontrá-las em 18 dessas aulas”, e que as representações priorizam “representações cartográficas de fontes oficiais”. “No entanto, algumas informações são representadas por meio de imagens geradas em ferramentas digitais e interativas”, diz.
Não foram respondidas questões acerca da dinâmica do tempo de tarefas, de trabalhos em grupo ou sobre a qualidade dos conceitos apresentados.
IGOR GIELOW / Folhapress