Projeto de Nunes com bonecas antirracistas é investigado após críticas do movimento negro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma compra de 128 mil bonecos artesanais sem licitação feita pela gestão Ricardo Nunes (MDB) é investigada pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Contas do Município (TCM).

Os produtos, classificados como “bonecos assustadores” por integrantes do movimento negro, custaram R$ 17,2 milhões aos cofres da Prefeitura de São Paulo e tiveram como destino as escolas infantis do município.

Procurada, a gestão municipal defendeu a contratação da empresa, a Ateliê Quero Quero, e afirmou que ela tem experiência em projetos contra o racismo. A companhia disse que atua na área desde 2021 e que o custo das bonecas está dentro do que se espera para esse tipo de produto.

Os itens buscam, em tese, enaltecer a população negra e latina ao inseri-los no cotidiano das crianças. Para ativistas, porém, eles prejudicam a autoestima das crianças que buscam caracterizar, além de remeterem ao período da escravidão.

O contrato de R$ 17,2 milhões sem licitação foi assinado em 29 de dezembro de 2022. A justificativa da prefeitura para contração da empresa foi a exclusividade dos bonecos a serem adquiridos.

Nas redes sociais, a empresa aparece como especializada em móveis infantis. Há questionamentos sobre o preço pago e se, de fato, a empresa seria a única capaz de fornecer esse material.

A Promotoria do Patrimônio Público recebeu reclamações sobre a compra há um mês, quando enviou ofícios aos envolvidos para se explicarem. Em representação recebida pelo TCM no último dia 16, há alerta sobre a velocidade do processo, que tramitou “de maneira célere, em pouco mais de um mês”, segundo trecho do documento. Uma equipe técnica analisa a representação.

Os bonecos foram encomendados para integrar projeto educacional direcionado a crianças de 0 a 5 anos e 11 meses matriculados nas unidades de educação infantil. A proposta era incentivar a inclusão e a diversidade ao inserir bonecas negras e com traços latinos no dia a dia das crianças.

Cada uma das cerca de 2.500 unidades educacionais da capital recebeu um kit composto por oito bonecas, sendo um menino e uma menina bolivianos, um bebê negro, uma boneca com turbante, uma com tranças e uma com pompom, além de um menino haitiano e um boneco com penteado black power.

“Professores reclamaram que os bonecos não contribuem para a formação da autoestima das crianças negras e latinas. Elas não se veem representadas por não retratarem o fenótipo da pessoa negra”, diz Claudete Alves da Silva, presidente do Sedin (Sindicato dos Educadores da Infância).

O sindicato pediu a retirada dos kits de bonecos em ofício enviado à Secretaria municipal de Educação em junho do ano passado, quando as peças foram entregues nas unidades. “As crianças não brincam porque os bonecos são muito feios”, diz Claudete. “Não têm sapatos, o que remete ao tempo da escravidão, e os olhos são esbugalhados. Vai na contramão da proposta de inclusão e diversidade. As bonecas bolivianas são cinzas; as crianças não são cinzas”, continua.

Em resposta ao ofício, a secretaria afirmou que os brinquedos não pretendem retratar pessoas reais e que a pasta se compromete com práticas antirracistas e não xenofóbicas. Sobre os pés descalços, a secretaria disse que representam “possibilidade de contato com a natureza”.

Sobre a aparência dos bonecos, a Ateliê Quero Quero afirmou que desconhece o teor das críticas do sindicato e que recebeu agradecimentos de educadores que ganharam o kit.

Em nota, a secretaria de Educação afirmou informou que a empresa contratada “fez parte de ações do município contra racismo, possui Cadastro da Pessoa Jurídica regular e consta como atividade econômica secundária o comércio varejista de brinquedos e artigos recreativos”.

Cada kit custou R$ 1.080 aos cofres públicos, o que representa R$ 135 por boneco. O valor foi questionado pela Procuradoria do município em um parecer. “O preço proposto para a aquisição de 16.000 itens (R$ 1.080,00 por kit) é maior e precisa ser especificamente justificado, inclusive levando em consideração eventual ganho de escala, se houver”, diz o documento.

A exclusividade do fornecedor, comprovada pela empresa via documento expedido pela Junta Comercial, também foi questionada pelos procuradores.

“O Ateliê Quero Quero é o único fabricante dos produtos descritos, mas não o único distribuidor”, diz trecho do parecer. Apesar do alerta, o processo de contratação seguiu sem alterações.

Com relação ao valor pago pelos bonecos, a gestão Nunes diz que ele é compatível ao cobrado pela fornecedora a clientes privados e públicos no país inteiro. “O valor ainda leva em conta despesas com a logística de distribuição para alunos de cerca de 2.500 unidades escolares”, diz trecho da nota.

A gestão também disse que o valor dos bonecos praticado pela empresa no mercado é de R$ 158 fora o frete, acima do preço pago pela prefeitura.

Sócia do Ateliê Quero Quero, Karine Ramos disse por meio de nota de seu advogado que a empresa produz a coleção de bonecas com características étnicas desde 2021. O produto chamou a atenção de gestores da rede municipal de ensino que encomendaram versões personalizadas, segundo ela.

A empresa também afirmou que no preço de R$ 135 por cada boneco estão embutidos os custos de “impostos, funcionários, matéria-prima, custo fixo, logística, elaboração de arte e design, desenvolvimento de guia pedagógico e gestão para que cada escola recebesse o seu kit presencialmente ‘porta a porta'”.

Em relação à exclusividade das peças, a sócia afirmou se tratar de um projeto personalizado à rede municipal desde a concepção. A prefeitura foi questionada sobre o assunto, mas não respondeu.

MARIANA ZYLBERKAN E ROGÉRIO PAGNAN / Folhapress

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