SÃO PAULO, SP, E CAMIZUNGO, ANGOLA (FOLHAPRESS) – Uma música angelical sobe, e uma sequência de imagens de pessoas negras rezando e olhando para o céu surge na tela. “Eu sei que várias ‘mamas’ aqui já oraram pedindo uma água limpa, pedindo uma vida digna. A oração que vocês fizeram para Deus vai ser respondida”, discursa Pablo Marçal, do alto de uma árvore.
O local fica na região de Camizungo, comunidade rural a 50 km de Luanda, capital de Angola, cenário de um projeto que o influenciador e candidato do PRTB tem usado como trunfo para exemplificar como vai desfavelizar São Paulo caso seja eleito prefeito e que a Folha visitou na última segunda (9).
As cenas acima são do documentário que o autodenominado ex-coach lançou em seu canal do YouTube no mesmo dia em que oficializou sua candidatura, há pouco mais de um mês. O tom heroico e radiante que coloca Marçal no centro da narrativa, porém, contrasta com a realidade.
O projeto foi criado pela ONG brasileira cristã Atos, presente no país há 14 anos, e é sustentado por cerca de mil doadores, entre os quais já figuraram outros famosos como a pastora Ana Paula Valadão, o jogador do Palmeiras Felipe Anderson e até a cantora Anitta contexto que Marçal menciona, mas não explica a fundo.
O empresário realmente é o principal financiador desde que conheceu o projeto através de uma seguidora em 2019, segundo a ONG, e a iniciativa de fato transformou a realidade da comunidade, levando a única escola e posto de saúde em quilômetros, além de refeitório, horta sustentável e centros de capacitação.
Há uma parte, porém, que não aparece na propaganda.
Das quase 350 famílias que Marçal promete realojar com mão de obra local, mais de 300 ainda vivem em barracos de lata que chegam a 50°C durante o dia. E a energia elétrica e a água que ele exalta ter trazido muitas vezes não chegam nem às 42 casas erguidas até agora, as quais provocaram novos conflitos por terra.
Também é subjetiva a “mudança de mentalidade” que o influenciador e seus sócios dizem ter provocado, em uma comunidade onde segundo eles “antes ninguém trabalhava”. “O pessoal tinha a mentalidade de não fazer nada e não produzir nada”, afirma seu advogado, Tassio Renam, em frente à câmera.
Pedro Fortaleza, coordenador da associação de moradores, conta que em 2018, portanto antes da chegada de Marçal, os moradores já trabalhavam no centro de agricultura sustentável levado pela ONG. “É uma comunidade, em princípio, formada por 90% de camponeses e 10% de funcionários públicos”, diz.
Por quem já recebeu as casas, como os idosos Morais Yaconda e Margarida João Lopez, Marçal, que entregou as chaves, é visto como “um pai, um anjo enviado por Deus”. Já alguns dos que ainda não se beneficiaram desconfiam e têm protestado pelo uso das terras das quais sobrevivem.
Na tentativa de compensar uma dessas descontentes, Fortaleza conta que a ONG Atos deu rapidamente uma casa a uma agricultora que possuía um terreno de 50 m². Ele diz que esses conflitos têm sido acompanhados de perto pela associação de moradores, para que não prejudiquem a continuidade do projeto.
Depois que a iniciativa surgiu, outras famílias em pobreza extrema do entorno, alimentadas pela esperança de serem contempladas, passaram a chegar e a construir mais casas de lata ao lado das novas de tijolos ecológicos (produzidos por cinco máquinas doadas por Marçal, quatro delas batizadas com os nomes de seus filhos).
Nessas partes, ainda existem cenas como crianças comendo em meio a ratos, segundo a própria ONG, que diz que as famílias originais estão cadastradas e que o governo local acompanha a situação.
Em outro filme divulgado em 2020, Marçal é apresentado dando água na boca de meninos angolanos. “Vai chegar um caminhão agora para perfurar o poço de água de vocês”, diz ele, já em dezembro de 2023. Mas a história é mais longa do que isso. A primeira doação para um poço na região veio ainda em 2017, por duas senhoras sul-coreanas.
A profundidade não foi suficiente, e um fazendeiro português vizinho cedeu o dele, para uso agrícola. Além dessa, há hoje ali outras duas fontes do recurso, que as pessoas buscam com baldes: água do governo, que a ONG encanou e é esporádica, e um poço artesiano que cem empresários levados por Marçal doaram, para beber.
Um segundo poço que ele cita na fala acima, financiado por ele na vila de Ombu a 15 minutos dali, encontrou água contaminada com óleo ao chegar a 90 metros de profundidade, por isso agora a ideia é puxar água de um lago que fica a 1 km de distância. Segundo a Atos, o valor foi de R$ 250 mil e a obra ainda está sendo orçada.
“Eu doei a rede elétrica”, também afirmou o influenciador à Revista Oeste na terça (10), outra afirmação que omite nuances. “Há um ano chegou a energia, mas só no imóvel da instituição [ONG]. Em 2022, o administrador municipal nos doou 30 postes de madeira. Depois, fizemos uma contribuição [vaquinha] para comprar os cabos”, conta Fortaleza, da associação de moradores.
Ainda assim, a luz é precária e às vezes não dá nem para ligar a televisão.
Marçal trata como exemplo de política pública para São Paulo uma iniciativa filantrópica que depende de contribuições voluntárias e sobre a qual não se sabe nem sequer o custo total. A ONG Atos afirma ser difícil estimá-lo pelo caráter das doações, que chegam gradualmente e incluem estruturas inteiras trazidas da China ou da Espanha, sem os valores.
Questionado pela reportagem sobre quanto já doou, Marçal respondeu apenas: “Vou lá pessoalmente em breve para mostrar para São Paulo”. Ele teria arrecadado ao menos R$ 4,5 milhões em dois leilões transmitidos ao vivo em 2023 e 2024, mas não está clara a quantia dada com dinheiro próprio nem a aplicação exata do dinheiro.
O assunto virou munição até para o pastor bolsonarista Silas Malafaia: “O [site] The Intercept traz uma grave acusação que você tem que explicar muito bem. Era para ter 90 casas, o que você fez com o dinheiro?”, diz ele aos gritos num vídeo espalhado nesta terça. “Acorda, evangélicos, povo da direita, cristãos, apoiadores do Bolsonaro: ele usa técnicas de neurociência para te manipular.”
O site citado por Malafaia publicou que as doações pedidas por Marçal à Atos foram feitas a dois CNPJs na cidade de Prata, na Paraíba. A ONG rebate que possui escritório físico no município, de onde vem seu fundador e pastor Itamar Vieira, e que o Centro Vida Nordeste, dono do outro CNPJ, é seu parceiro desde 2017 e envia os recursos do Brasil.
Segundo Vieira, dez casas estão atualmente na fase de produção de tijolos, e as 300 estão previstas para 2025. Mas como a chegada das remessas ao país demora e a construção é feita pelos moradores, os prazos não são fixos: “Respeitamos o tempo deles”, diz o pastor, lamentando a repercussão politizada do assunto na campanha eleitoral.
Em um dos vídeos, mostrando o braço arrepiado ao descobrir que o nome Camizungo significa “o fruto que não deu certo”, Marçal diz que “o dia que você vier aqui vai ter uma placa na frente escrito assim: Camizungo […], a terra que frutificou”. A placa, hoje, ainda diz apenas Camizungo.
JÚLIA BARBON E SIMÃO HOSSI / Folhapress