Projeto para deslocar caiçaras em São Sebastião (SP) gera reação de moradores e da Câmara

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Câmara Municipal de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, deve votar nesta terça-feira (23) um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) que visa suspender a desapropriação de 29 moradias caiçaras na baía do Araçá. A proposta do vereador Giovani dos Santos (PP), conhecido como Pixoxó, foi aprovada por unanimidade pela Comissão de Justiça da Casa na última terça-feira (16).

Os decretos de desapropriação, de autoria do prefeito Felipe Augusto (PSDB), foram publicados em 19 de março, seis dias após a apresentação do Projeto de Lei Complementar (PL 4/2024), também de sua autoria, para a desapropriação e revitalização de toda a orla do município. O texto foi arquivado no início de abril, mas os decretos continuam valendo.

O PL 4/2024 busca a preservação ambiental das áreas de mangue e a criação de atrações que “contribuem para a economia das comunidades locais”. De acordo com o prefeito, será construída a sede da unidade de conservação do mangue do Araçá, um segundo rancho de pesca e uma quadra de vôlei de areia.

Um movimento de moradores da região protesta contra esse projeto desde sua publicação. “O prefeito percebeu esse movimento, essa resistência. Por questão de lei, baixou os decretos individuais [de desapropriação] para os moradores da baía do Araçá”, diz Pixoxó.

Os protestos da comunidade acontecem, principalmente, dentro da Câmara Municipal. No dia da publicação dos decretos, diversos moradores contrários ao PL compareceram à Casa legislativa. Com cerca de duas horas, uma bomba de gás de pimenta estourou, causando alvoroço e paralisando a sessão.

“Trata-se de moradias, famílias tradicionais que vivem da pesca, é uma comunidade que passa de tataravô pra bisavô. É uma injustiça muito grande, como vão sobreviver?”, diz o vereador. Na região, há famílias tradicionais de quinta geração.

O programa não especifica quais locais seriam desocupados, mas todos os 17 decretos de desapropriação têm como alvo moradias no bairro Varadouro, na baía do Araçá, parte da orla vizinha ao porto do município. Felipe Augusto diz que outros locais por toda a orla da cidade também serão desapropriados.

Moradores, porém, relatam que a intenção do prefeito com as desapropriações é a ampliação do Porto de São Sebastião e a construção de uma marina pública. “Eles falam que querem cuidar, mas já não cuidavam antes. Quem cuida são os moradores”, diz Humberto Almeida, pescador da região e uma das pessoas que receberam os decretos.

Uma das poucas áreas de São Sebastião com remanescente de manguezal, a baía é lar da comunidade tradicional caiçara e da pesca tradicional.

A área tem praia lodosa, própria para a reprodução de crustáceos, como camarões e caranguejos. “Essas áreas estuarinas [saída de um corpo de água] sempre são providas de muitos nutrientes, e esses animais são sustentados por esse tipo de ambiente. A população aproveita para tirar sustento de lá”, explica Cláudio Tiago, professor no CEBImar (Centro de Biologia Marinha) da USP.

A comunidade do Araçá procurou o CEBImar, que atua e estuda a região há mais de 50 anos, para explicar a parte técnica do programa de revitalização da orla, que não detalha o que será feito na região. “O projeto não teve embasamento científico, pelo menos não está escrito no projeto”, afirma Tiago.

O prefeito diz que o ICC (Instituto de Conservação Costeira) de São Sebastião foi consultado para a elaboração do texto.

A maior preocupação da população caiçara é ter um lugar para ir caso as desapropriações aconteçam. “A gente não tem pra onde ir, e não queremos dinheiro, não temos o que comprar. Somos caiçaras, nascidos e criados no mar. Se fomos para morro, não temos como levar nossos barcos”, comenta Geovane Oliveira, que vive da pesca e mora na praia.

O prefeito argumenta que a retirada dos moradores região é necessária para o restabelecimento dos mangues. “Essas casas foram construídas dentro de um ecossistema que a gente quer preservar”, diz. “O bioma foi todo destruído pelas pessoas que estão alojadas ali”.

O manguezal do Araçá é o mais estudado e conhecido da região, importante por estar dentro de uma área completamente urbanizada. A baía, porém, vai muito além do mangue.

“A baía do Araçá é importante por si só, não é só o manguezal, é também a raiz do camarada que fica lá com com a varinha de pesca dele vendo se pega um baiacu”, explica Yara Schaeffer-Novelli, professora da USP e referência na conservação de ambientes marinhos.

“Essa gente [caiçaras] inclusive nos ajuda a cuidar daquela área, porque eles estão ali todo tempo”, diz a professora. “Nós conhecemos aquela área e sabemos do valor daqueles caiçaras que moram ali.”

O MPF (Ministério Público Federal) instaurou um inquérito civil para investigar os decretos publicados pelo prefeito. O órgão afirma que o processo de desapropriação está acontecendo de forma ilegal, desobedecendo a legislação, acordos internacionais e desrespeitando os direitos dos povos tradicionais.

O povo tradicional caiçara e seu modo de subsistência são protegidos por leis federais e internacionais das quais o Brasil é signatário, como a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais e a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).

“Se você tira essa comunidade desse território, ele desaparece. Seria determinar o extermínio de uma comunidade pesqueira. Perde-se a técnica, o conhecimento, perde-se tudo. É muito grave essa medida, ainda mais uma desapropriação em massa de uma comunidade tradicional”, diz a procuradora Walquiria Imamura Picoli.

Para o MPF, os fundamentos do projeto são contraditórios entre si, já que prevê novas atrações que contribuam para a renda de comunidades locais, ao mesmo tempo em que pede a desapropriação.

Moradores relataram à procuradora que há pressão e ameaças por parte da prefeitura para que eles aceitem as desapropriações. “Não existe consenso nem em não desapropriar, tem caiçaras que acreditam que vão tirar a sorte grande e vender suas terras por altos preços”, diz Maria Cecília Borges, ativista ambiental e caiçara de quarta geração.

O prefeito afirma que 18 das 29 famílias afetadas estão de acordo com a medida. Ele diz ainda que o projeto de lei enviado por ele à Câmara prevê um valor maior do que a indenização em caso de desapropriação.

Assim como aponta o MPF, as indenizações previstas no programa contemplam apenas as habitações em área alodial nas orlas, e não aquelas em área de marinha, que são de competência da União. A prefeitura afirma que um projeto de lei junto à SPU (Secretaria de Patrimônio da União) foi elaborado para a indenização dos moradores dessas áreas.

JULIA ESTANISLAU / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTICIAS RELACIONADAS