SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Homenageado com o nome da rua e do viaduto que passa por cima da avenida Nove de Julho, no centro de São Paulo, o fazendeiro e político Martinho Prado pode ser obrigado a dividir o seu protagonismo histórico com uma ativista lésbica. O mandato coletivo Quilombo Periférico (PSOL) deve apresentar um projeto no começo de julho para rebatizar a rua, na Bela Vista, com o nome de Rosely Roth.
O viaduto permaneceria com o nome de Prado, que foi vereador, deputado provincial e federal no século 19.
A escolha da rua para homenageá-la tem sua razão de ser. No número 119, ficava o Ferros Bar, onde um levante feito no dia 19 de agosto de 1983 se tornou um marco histórico do movimento lésbico no país.
Rosely Roth foi uma das líderes da invasão e, ao longo dos anos 1980, foi a principal figura pública das mulheres homossexuais no país. O motivo da manifestação foi a tentativa dos donos do bar de proibir a venda do jornal ChanacomChana no local. O bar já era um importante ponto de encontro delas e a publicação era o veículo oficial do Grupo Ação Lésbica Feminista (Galf), do qual ela fazia parte.
A covereadora Débora Dias, diz que a proposta de mudança de nome ainda deve passar por uma plenária de movimentos lésbicos ligados ao mandato antes de protocolar o projeto de lei na Câmara Municipal. A ideia é coletar assinaturas favoráveis ao longo de julho e agosto, o mês do orgulho lésbico, data escolhida justamente por conta da ocupação do Ferros.
A mobilização também deve servir para convencer a Jornada do Patrimônio a reconhecer o Ferros Bar como um local de memória histórica da cidade. Segundo a vereadora, seria o primeiro local a ser receber uma placa azul por conta da mobilização das lésbicas. O local já foi reconhecido por sua importância no combate à ditadura militar pela Comissão da Verdade e pelo Memorial da Resistência. O endereço atualmente é usado como vestiário de funcionários dos restaurantes de Walter Mancini na rua Avanhandava.
Uma das diretoras do filme Ferros Bar, Rita Quadros reforça a importância de Rosely no ato. “Quando apresentamos o filme, perguntamos o que as pessoas diriam hoje se subissem numa cadeira como ela fez naquela noite”, diz. Segundo Rita, o bar era tão icônico para a comunidade lésbica, que muitas adolescentes, que não podiam entrar nele por serem menores de idade, ocupavam as escadarias da sinagoga Beth-El, onde hoje é o Museu Judaico, em frente ao local.
A historiadora Julia Kumpera, especialista em estudos da lesbianidade, afirma que Rosely era naquele momento o rosto conhecido do movimento. “Ela assinava seu nome completo nos textos do Chana com Chana, o que não era comum na época e também foi a primeira a ir a um programa de TV, da Hebe Camargo, em 1985, para falar sobre sua orientação sexual”, explica.
O Galf, conta, foi formado a partir da atuação das mulheres no grupo homossexual Somos e se articulava com movimentos feministas.
Na época, segundo Julia, as mulheres tinham dificuldade de garantir um protagonismo dentro dos movimentos homossexuais e as lésbicas consideravam ter pouca voz dentro dos grupos feministas. A dificuldade é reforçada por uma companheira de militância que conviveu com a militante na época e prefere não se identificar. “Ela tinha uma energia, sagacidade e inteligência que faziam com que fôssemos ouvidas”, afirma.
O peso desse protagonismo, para esta colega, cobrou seu preço na saúde mental de Rosely, que acabou se afastando gradativamente do movimento e das pessoas mais próximas. Amiga de infância da militante, Ivy Judensnaider se lembra de não ter sido reconhecida por ela na última vez que se encontraram.
“Ela parecia perdida, acho que nem me reconheceu”, conta. Rosely estava morando em uma pensão na rua Prates, no Bom Retiro. Pouco tempo depois, a militante mudou para o Rio de Janeiro, onde se suicidou em 1990.
Ivy estudou com Rosely na escola judaica Scholem Aleich, no Bom Retiro, e depois no Equipe. “Lembro que uma vez fui ao cinema com ela e um amigo dela que era cadeirante. Ela fez um baita discurso sobre a acessibilidade do local. Isso nos anos 1980”, conta. Para Ivy, a militância era uma parte essencial da vida da amiga e não só em temas de sexualidade.
“Ela pensava para frente, era visionária”, diz.
O coletivo LGBTQIA+ judaico Gaavah (orgulho, em hebraico) também atua para o resgate da memória de Rosely. O grupo abriu uma campanha de arrecadação para colocar a matzeiva (lápide) no túmulo da ativista, no cemitério judaico de Vila Rosali, em São João de Meriti, na baixada fluminense.
Integrante do grupo, Daniela Weiner foi responsável pela localização do túmulo. “Na tradição judaica, a matzeiva é colocada um ano após a morte. Acontece que a Rosely era órfã de mãe, e seu pai e sua irmã morreram menos de um ano após sua morte”, explica.
Com isso, o túmulo dela permanece sem uma identificação. Para ela, a medida é importante para dar visibilidade à militante dentro e fora da comunidade.
LEONARDO FUHRMANN / Folhapress