SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A proposta do governo Lula (PT) para endurecer penas dos crimes contra o Estado democrático de Direito, que pode chegar a 40 anos de prisão no caso de atentado à vida contra autoridades, foi considerada excessiva por especialistas ouvidos pela reportagem.
As íntegras dos projetos de lei ainda não foram divulgadas, mas o Ministério da Justiça disponibilizou um resumo.
Segundo o texto, o projeto pretende aperfeiçoar os artigos 359-L e 359-M, ambos do Código Penal, e “dispor sobre as causas de aumento aplicáveis”.
Na lei hoje em vigor, que foi aprovada em 2021, não há uma diferenciação da pena para esses crimes a depender do tipo de participação do investigado. Essa legislação substituiu a Lei de Segurança Nacional, que vigorava desde a época da ditadura militar.
Sobre as alterações propostas, há quem considere que, por esses crimes serem muito recentes, ainda seria preciso mais tempo de maturação antes de buscar mudá-los. Por outro lado, há quem veja como positiva a gradação de penas proposta, que mudaria a depender da participação nos crimes, como de financiadores e de organizadores.
Outro destaque são as alterações sobre as medidas cautelares para busca e apreensão de bens e bloqueio de contas bancárias em caso desses crimes. A proposta autoriza que elas sejam feitas de ofício pelo juiz, ou seja, sem provocação de outras partes, além de incluir a União como possível solicitante.
Uma das propostas é a pena de 20 a 40 anos de prisão para crimes que atentem contra a vida dos presidentes dos três Poderes, do vice-presidente da República, de ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e do procurador-geral da República, com fim de alterar a ordem constitucional democrática.
Outro ponto é a pena de 6 a 12 anos para quem atente contra a integridade física e liberdade dessas autoridades, também apontando a finalidade contra a democracia.
A previsão de pena de até 40 anos passou a ser possível a partir de 2019, com a aprovação do pacote anticrime. Até então o limite no Brasil era de 30 anos.
Para Raquel Scalcon, professora da FGV Direito São Paulo e advogada criminalista, a lei dos crimes contra o Estado democrático de Direito é muito recente, não tendo sido possível ainda “aferir, efetivamente, a adequação da redação dos crimes e da fixação das penas”.
A professora também considera que a proposta representa um aumento muito considerável das penas.
“O sistema prisional brasileiro vive um estado de coisas inconstitucional. Então, a fixação de pena máxima de 40 anos, por mais grave que seja o crime, percebo haver uma desproporção com os demais crimes do Código [Penal] e com a realidade prisional”, afirma.
O projeto de lei prevê ainda pena de 6 a 12 anos de reclusão para quem organizar ou liderar movimentos antidemocráticos e de 8 a 20 anos para quem financiá-los.
O governo Lula justificou a proposta afirmando que os ataques de 8 de janeiro mostraram que o tratamento penal a crimes desse tipo “precisa ser mais severo a fim de que sejam assegurados o livre exercício dos Poderes e das instituições democráticas e o funcionamento regular dos serviços públicos essenciais”.
Vinicius de Souza Assumpção, advogado criminalista e segundo vice-presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), também vê como negativa a possibilidade de penas de até 40 anos e afirma que não há estudos científicos sobre a efetividade da adoção de penas elevadas.
“Essa [proposta de] alteração consagra a maior pena máxima prevista para um crime no ordenamento jurídico brasileiro”, diz ele.
Para o criminalista, “nem mesmo a importância de bens jurídicos como o Estado democrático de Direito justifica a aplicação de penas tão elevadas.”
Por outro lado, ele avalia que, em tese, as alterações com crimes específicos para condutas específicas pode ser pode ser positiva, para que a pena aplicada ao final seja compatível com o delito que foi praticado.
O advogado ressalta, contudo, que seria importante ter acesso à justificativa para cada uma das previsões de alteração, porque elas criam limitações para quem vai julgar. “Organizar ou liderar é mais ou menos grave do que financiar?”, questiona.
Davi Tangerino, advogado criminalista e professor de direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), não considera que o fato de a legislação ser recente torne a proposta de alteração apressada.
Ele aponta como uma virtude das sugestões o estabelecimento de uma gradação da pena, a depender das gravidades das condutas.
“Esse tipo de escadinha faz todo sentido”, diz. “Isso evita que pessoas com contribuições diferentes recebam penas iguais.”
Por outro lado, ele também vê a pena de 40 anos como excessiva e considera o endurecimento das penas simbólico, mas sem evidência empírica de que ele geraria efeitos de dissuadir as pessoas de cometer o crime.
Para Alexandre Wunderlich, professor de direito penal e autor do livro “Crime Político, Segurança Nacional e Terrorismo”, as propostas de mudança são desnecessárias e há excesso na pena de até 40 anos de prisão.
Ele classifica as penas da lei atual como razoavelmente adequadas, sustentando que o controle da criminalidade é feito por uma série de fatores complexos, não pelo aumento das penas.
“Essas inovações punitivistas representam retrocesso, típica de uma situação de emergência, sem a devida reflexão, para atendimento de certos clamores sociais”, afirma.
Segundo Diego Nunes, que é professor de história do direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e organizador do livro “Crimes contra o Estado Democrático de Direito”, durante a tramitação do texto na Câmara, a previsão de pena específica para o caso de violência ou morte a determinadas autoridades chegou a constar no projeto. O item depois foi alterado para causa de aumento de pena, e acabou fora da versão aprovada.
A princípio, Nunes não vê com negativa a inserção do atentado à vida das autoridades como como causa especial de aumento de pena em caso de cometimento dos crimes contra o Estado democrático de Direito.
Ele avalia que, assim, a gradação da aplicação da pena é menos passível de mudanças, caso a caso, dependendo do juiz. Nunes pondera, contudo, que há espaço para discutir se o tamanho da pena é adequado.
Além da proposta que endurece as penas, o governo também anunciou um projeto de lei que autoriza a apreensão de bens e o bloqueio de contas bancárias e ativos financeiros em crimes contra o Estado democrático de Direito.
A proposta determina que este tipo de medida cautelar poderá ser feita de ofício pelo juiz, além de incluir a União entre os atores que podem requerê-la.
Raquel Scalcon vê problema na proposta. “Juiz decretar cautelar de ofício seria um retrocesso no sistema acusatório brasileiro e de questionável constitucionalidade”, afirma ela. “E assim penso independentemente da gravidade do crime investigado.”
Tangerino, por sua vez, não vê a medida como problemática, por se tratar de medida cautelar relacionada ao patrimônio. Ele afirma que hoje há controvérsia, na jurisprudência, se é possível que esse tipo de medida seja ou não tomada sem provocação pelo juiz.
RENATA GALF / Folhapress