SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De segunda a sábado, a partir das 7h, Aline faz programas no entorno da estação da Luz, centro de São Paulo. Aos 42 anos, ela repete a rotina desde o início da pandemia por Covid-19, quando ficou desempregada. Nos últimos meses, porém, procurar clientes tem sido mais difícil.
Prostitutas afirmam ser coagidas pela GCM (Guarda Civil Metropolitana) a deixar aquela área. Diariamente, os agentes estariam as perseguindo e agredindo para isso. A rotina teria começado em março deste ano, como mostrou a Folha, e se intensificado nesta semana.
As vítimas tentam gravar investidas para juntar provas. Na terça-feira (30), duas delas registraram uma viatura que teria as atacado usando spray de pimenta. Tal ação, porém, não é mostrada no vídeo. A Secretaria de Segurança Urbana disse analisar o conteúdo.
“Se constatada qualquer irregularidade na abordagem, o caso será encaminhado à Corregedoria da instituição para aplicação das sanções previstas”, afirmou a pasta.
Na quinta-feira (2), a gestão municipal também foi questionada se há orientação para retirar garotas de programa da Luz e se foi notificada sobre outras denúncias. Nenhuma resposta foi dada.
Prostituição não é proibida no país. A prática consta, inclusive, na Classificação Brasileira de Ocupações. O Código Penal estabelece ser crime apenas o rufianismo -ou seja, quando outra pessoa tira proveito financeiro da atividade, os cafetões e cafetinas.
Como as mulheres da Luz estão trabalhando sozinhas, nada justifica uma ação contra as mesmas, declara Maíra Fernandes, advogada, professora da FGV (Fundação Getulio Vargas) e coordenadora do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.
Para ela, isso é fruto de preconceito, hipocrisia e uma brecha legal: mesmo considerada uma ocupação, a oferta de serviços sexuais não é regulamentada.
“A profissão é ainda mais marginalizada por isso. Fazer a regulamentação possibilitaria uma proteção maior em termos de saúde e segurança às profissionais”, diz Fernandes.
Medo, fome e intrigas
Houve diminuição do número de acompanhantes no entorno da estação da Luz desde março, mas aumento dentro dela, onde a GCM não chega. Nos salões, as mulheres ficam circulando, sempre atentas, ou escondidas atrás de pilastras.
Sandra, 33, é uma delas. Há três semanas, ela foi abordada numa das entradas do endereço e obrigada a sair. Os agentes, relata, a perseguiram durante dez minutos pelas ruas para terem certeza do seu distanciamento.
Amedrontada, ficou em casa por cinco dias. Sem dinheiro e mãe solo, voltou a trabalhar porque a filha reclamava de fome. Desde então, faz ponto no saguão do edifício, se esgueirando de olhares estranhos e assobiando para possíveis clientes.
A reportagem ouviu outras cinco prostitutas e coletou relatos de xingamentos diários e cusparadas de guardas-civis.
Muitas das mulheres compartilham suas reclamações contra a GCM com o coletivo Mulheres da Luz, que visa promover a cidadania e a garantia de direitos humanos das trabalhadoras do sexo naquela região.
Thamiris Santos, presidente do grupo, acredita ocorrer uma articulação para higienizar o centro de São Paulo. “Eles equiparam as prostitutas a usuários de droga, as afastam e comprometem o único meio de sustento delas.”
Segundo o Mulheres da Luz, a maioria das acompanhantes dali tem entre 30 e 78 anos, vive nas periferias e se responsabiliza pelo sustento de suas famílias. Por programa, elas ganham de R$ 20 a R$ 80.
A prostituição naquela área não é restrita à estação, também ocorrendo no parque da Luz.
Lá, muitas das enxotadas pela Guarda tentam um espaço para continuar prestando serviços, sendo logo expulsas aos gritos e ameaças pelas colegas de ocupação, que dizem já ter muita concorrência para pouca clientela.
As acompanhantes já sofreram outras investidas para abandonarem a Luz, seu reduto desde o início do século 20. Entre 1940 e 1953, elas foram confinadas numa casa do Bom Retiro por decreto do governo estadual, com o propósito de “limpar o centro”. O endereço foi batizado de Zona do Meretrício.
Durante a ditadura, também houve perseguições e prisões sob justificativa de moralização.
BRUNO LUCCA / Folhapress