RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS0 – Enchentes no Rio Grande do Sul, rompimento da barragem de Brumadinho (MG) e queda do voo da Air France. Eventos com número elevado de mortes exigem trabalho intenso dos servidores que identificam corpos para dar um desfecho aos familiares de quem perdeu a vida. Para isso, eles adotam um protocolo que ajuda peritos a identificar 99% das vítimas.
Em desastres, dezenas de cadáveres chegam ao mesmo tempo ao necrotério, desafiando a capacidade dos servidores de atenderem a todos. Somado a isso, não há espaço suficiente para armazenar os corpos, sobretudo em cidades menores.
Nesses casos, a perícia adota o protocolo DVI, sigla em inglês para Identificação de Vítimas de Desastres. O procedimento é diferente de uma investigação de homicídio, em que o objetivo do legista é identificar a causa da morte. No desastre, a prioridade é descobrir quem é a vítima.
Esta é a segunda reportagem da série Não Identificado, de Vida Pública, uma parceria entre a Folha e o Instituto República.org, que mostra o trabalho de peritos.
O protocolo estabelece um planejamento prévio que ajuda os peritos a não perderem tempo para se organizarem quando o desastre ocorre. Cada servidor já sabe sua função, desde o médico legista -que examina o cadáver- até o assistente social –que avisa os familiares das vítimas identificadas.
Em todo o país, os protocolos seguem uma mesma linha de trabalho, baseada em guia da Interpol.
Quando os corpos ainda têm mãos, os peritos tentam identificar a impressão digital, cujas informações estão cadastradas em bancos da polícia. Mesmo nos carbonizados é possível coletar as digitais: quando uma pessoa morre queimada, ela costuma fechar a mão, preservando as impressões.
Também é possível descobrir quem é a vítima pela arcada dentária, quando há exames odontológicos prévios.
Se nada disso for possível, os peritos comparam o DNA do cadáver com o de familiares que indicaram seu desaparecimento. É a última alternativa, pois tem um custo elevado.
No Rio Grande do Sul, a adesão ao protocolo ajudou a perícia a reconhecer 99% dos mortos nas enchentes deste ano. Lá, cinco servidores atuaram ao mesmo tempo para identificar cada corpo, coletando material genético, impressão digital e analisando a arcada dentária.
“Precisamos seguir o protocolo principalmente devido ao grande volume de vítimas. Os profissionais trabalharam simultaneamente no corpo para não perdermos tempo”, diz Rosane Baldasso, perita criminal e coordenadora da comissão permanente de atendimento a desastres em massa no Instituto-Geral de Perícias do estado.
Mesmo nos piores dias de chuva, os gaúchos não deixaram de ir ao IML em busca de respostas sobre seus entes desaparecidos.
Ao chegar ao instituto, eles respondiam a perguntas sobre características da possível vítima que ajudassem a identificá-la, como uso de próteses, aparelhos ou tatuagens. Nessa ocasião, também era coletado material genético dos familiares para exames de DNA.
Em princípio, os peritos esperavam receber 500 corpos, já que o número de desaparecidos era alto. Foi montado um IML de campanha em um ginásio para atender a todos, com contêineres para armazenar os cadáveres, algo também previsto em protocolos de DVI.
O número de mortos foi menor que o esperado. Até agora, 182 foram encontrados e 29 continuam desaparecidos, segundo o governo gaúcho.
Outra tragédia climática com elevado número de vítimas foi a da região serrana do Rio de Janeiro, em 2011. Na época, o protocolo do DVI ainda estava sendo criado no estado, o que atrasou a identificação dos corpos. Foram mais de 900 mortos pelo temporal.
Depois disso, a polícia do Rio adotou o protocolo de forma mais ampla, hoje ensinado na formação de novos oficiais. Nas chuvas que afetaram a mesma região em 2022, 98% das vítimas foram identificadas.
“Os poucos não identificados foram por ausência de condições do material humano”, conta Maura Cristina é papiloscopista da polícia do estado e estava no IML de Petrópolis nas chuvas de 2011. “Hoje, os profissionais já entendem as fases e sabem como trabalhar dentro de cada uma, o que facilita a resposta.”
Em Brumadinho, a força da lama que invadiu o entorno da barragem fragmentou os corpos, o que desafiou o trabalho dos peritos. Por isso, houve vítimas que precisaram ser identificadas mais de uma vez.
Na ocasião, os corpos ficaram armazenados em caminhões frigoríficos. Também foram criadas estações de trabalho para que passassem por todas as etapas de identificação.
Se o cadáver não tivesse mãos, era higienizado e passava por outros exames, como o de DNA e odontológico, segundo a papiloscopista Natalia Silva, do IML de Belo Horizonte.
Para Natalia, que passou meses trabalhando em Brumadinho, uma das partes mais difíceis foi lidar com a comoção social. Na época, parentes das vítimas aguardavam na porta do IML, procurando informações sobre os desaparecidos.
“No início, não tínhamos noção do tamanho do acidente. No fim, foi um trabalho que durou meses, porque os corpos levaram muito tempo para serem encontrados”, diz. “Eu tentava trabalhar e não pensar em nada, mas só consegui descansar depois que acabou.”
No desastre da Air France, em 2009, os peritos da Polícia Federal se deslocaram a Fernando de Noronha (PE), onde foi feito um IML de campanha para receber e armazenar o volume elevado de corpos. Ao todo, foram 228 mortos.
Marco Antonio de Souza é papiloscopista da Polícia Federal. Além do desastre da Air France, trabalhou em casos como Brumadinho e na identificação de Dom Phillips e Bruno Pereira, Teori Zavascki e Eduardo Campos.
O papiloscopista diz que, na época do acidente no voo Rio-Paris, o protocolo também ainda não estava bem estabelecido na PF. “Não sabíamos exatamente quantas vítimas seriam encontradas e estávamos com medo de não conseguir capacidade de processamento”, diz.
A lista de passageiros reduziu o campo de busca, mas não foi o suficiente. Apenas 58 eram brasileiros e tinham dados cadastrados em bancos nacionais. Para os estrangeiros, a Interpol teve que buscar material genético e impressão digital nas casas das vítimas, que ajudaram a identificar os demais.
O acidente, além de grandes eventos que ocorreram no Brasil a partir de 2009, fez a PF melhorar e ampliar a adoção do protocolo.
LUANY GALDEANO / Folhapress