PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Última protagonista viva de “Orfeu Negro”, Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960, Lourdes de Oliveira adorou “Ainda Estou Aqui”. “Fiquei muito orgulhosa do Brasil. Adorei tanto que convidei meu filho para ver. Fernanda Torres maravilhosa, Walter Salles é o melhor diretor do Brasil.”
Aos 86 anos declarados (embora em seu registro de nascimento conste 1935), Lourdes disse à reportagem que ainda vai muito ao cinema, perto do apartamento onde vive sozinha, no 15º “arrondissement” de Paris. A silhueta esbelta reflete o passado de bailarina clássica.
“Não me dão mais de 70. Ninguém entende. Os médicos aqui me dizem: ‘Madame Camus [seu nome de casada], a senhora é um caso único.’ Perguntam qual é a minha receita. Como açúcar demais, sal demais. E só gosto de Coca-Cola e suco de laranja.”
Inscrito no Oscar como produção francesa, o filme que Lourdes estrelou é elogiado pela exuberância da fotografia e da trilha sonora, e criticado pelo olhar eurocêntrico sobre um Brasil exótico. Mas “Orfeu Negro” teve o raro mérito, para a época, de valorizar um elenco negro. Em uma sociedade preconceituosa, porém, o sucesso não levou seus protagonistas ao estrelato duradouro.
Breno Mello, intérprete do personagem-título, morreu praticamente esquecido, em Porto Alegre, em 2008, mesmo ano da morte da atriz americana Marpessa Dawn que completava o triângulo amoroso do film, em Paris.
Do elenco de “Orfeu”, quem teve a trajetória mais longa como atriz foi Léa Garcia, conhecida do público pelos inúmeros papéis em telenovelas. Ela morreu em 2023, aos 90 anos. Foi com Léa que Lourdes manteve o vínculo mais forte, desde que se radicou na França, há mais de 60 anos. “Tínhamos contato sempre. Ela estava maravilhosa, a morte dela foi rápida.”
Quanto a Lourdes, ela abriu mão da carreira de atriz para cuidar dos dois filhos e do marido o próprio diretor de “Orfeu”, o francês Marcel Camus (1912-1982). Diz que não se arrepende da decisão. “Eu tive sorte. Fiz um filme só [na verdade, ela ainda atuou em outra obra de Camus, ‘Os Bandeirantes’, em 1960] e até hoje falam dele. Meu marido só me deixou felicidade pelo resto da minha vida.”
Apesar disso, ela não ignora o peso da questão racial. “A gente sabe que o brasileiro é racista, não adianta, né?”
A trajetória singular de Lourdes é desconhecida dos brasileiros. Na França, foi resgatada por um dos filhos, o escritor Jean-Christophe Camus, e um dos netos, Némo.
Inspirando-se na biografia da mãe, Jean-Christophe roteirizou uma história em quadrinhos, intitulada “Negrinha”. Némo Camus entrevistou longamente a avó para criar, com o bailarino brasileiro Robson Ledesma, um espetáculo de dança e teatro chamado “Dona Lourdès” (assim mesmo, com acento grave, devido à pronúncia em francês). Encenado na Europa no ano passado, será apresentado na Bienal de Dança do Ceará, em outubro.
A vida da atriz, relata Némo, começou como milhares de outras no Brasil. A mãe, Maria Odila Ribeiro, doméstica, negra, engravidou do filho de um patrão, branco. O pai biológico nunca assumiu Lourdes. A menina ganhou ainda na infância uma nova certidão, em que consta como pai o companheiro de Odila, Darcy Oliveira (1905-1945), renomado pandeirista e compositor de alguns sucessos da era do rádio.
“Do meu ponto de vista, enxergo muita violência na história da minha avó”, analisa Némo, referindo-se ao branqueamento e ao patriarcado. “Mas ela não vê assim, de modo algum. Conta que, quando saía com a mãe, pensavam que era a babá. Mas Odila se orgulhava dessa confusão e da cor da pele da filha, mais clara. Era um racismo internalizado muito forte.”
Os contatos de Odila, que trabalhou como governanta na embaixada dos Estados Unidos, permitiram inscrever a filha em cursos de piano e dança clássica. Lourdes estaria destinada à carreira no balé, se sua beleza não tivesse chamado a atenção de Camus, no Rio, à procura de atores para seu projeto.
Orfeu Negro” levou a jovem ao estrelato instantâneo. No papel de Mira, a noiva ciumenta de Orfeu, ela esbanja sensualidade. Para a imprensa da época, era o arquétipo da beleza da mulata brasileira.
Lançado no Brasil com o nome de “Orfeu do Carnaval”, o filme ganhou uma espécie de tríplice coroa do cinema: a Palma de Ouro do Festival de Cannes de 1959, o Oscar e o Globo de Ouro de 1960.
Esses prêmios foram comemorados pelos brasileiros como se o longa fosse nacional. Afinal, era filmado e ambientado no Rio, falado em português, por atores quase todos brasileiros. Baseava-se na peça “Orfeu da Conceição”, de Vinícius de Moraes, e tinha trilha sonora de Luiz Bonfá e Tom Jobim.
Porém, foi bancado por franceses e italianos embora os produtores tenham tentado patrocínio com o presidente Juscelino Kubitschek. Por isso, é considerado um filme europeu. Quem recebeu a estatueta em Hollywood foi o produtor francês Sacha Gordine, que apenas agradeceu “em nome de todos os camaradas que trabalharam no filme”.
A discussão sobre a nacionalidade da produção é tão antiga quanto o próprio filme. “O que há de brasileiro neste filme é muito pouco”, decretou na época o então jovem crítico do “Diário Carioca”, Cláudio Mello e Souza. “É nosso ou deles?”, perguntou Carlos Machado no “Diário da Noite”. Ele mesmo respondeu: “Não nos enfeitemos com penas de pavão… o filme é francês legítimo.”
Os créditos iniciais na tela, à primeira vista, são insofismáveis: “Coprodução franco-italiana”. Porém, logo em seguida, os mesmos créditos informam: “Com a participação de Tupan Filmes Ltda. (São Paulo)”. Em várias fontes de pesquisa, o longa é creditado como produção trinacional.
Sessenta e seis anos depois, pouco envolvidos com o filme ainda vivem. Além de Lourdes, a reportagem localizou outros dois: o ator mirim Aurino Cassiano tornou-se PM em Lavras (MG); e a figurante francesa Élisabeth Védrenne hoje é uma respeitada crítica de arte na França. O pai dela era professor universitário no Rio e conhecia o diretor Camus. “Eu tinha 14 anos, apareço três segundos no final do filme. O Rio era o paraíso”, lembra Élisabeth.
Uma anedota real permite medir o impacto de “Orfeu Negro” na conservadora sociedade de 1959. Em um cinema de Chicago, uma jovem branca de 16 anos, chamada Ann Dunham, ficou fascinada com a beleza negra exibida na tela.
O fascínio contribuiu para que ela se casasse, dois anos depois, com um queniano, colega na Universidade do Havaí. Quem contou essa história, na autobiografia “Sonhos do Meu Pai”, foi o filho do casal, Barack Obama.
ANDRÉ FONTENELLE / Folhapress