SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Três dias após o fim do inédito motim de mercenários contra as Forças Armadas de Vladimir Putin, a Guarda Nacional da Rússia anunciou que receberá equipamento militar pesado, como tanques. Ao mesmo tempo, o Grupo Wagner terá de devolver blindados que usaram em combates na Guerra da Ucrânia.
A guarda, de 340 mil homens, foi criada por Putin em 2016 para lidar com questões de segurança interna e fronteiriças e responde ao presidente, não à pasta da Defesa. É vista, assim, como sua força pretoriana e organizou a defesa de Moscou contra a coluna armada do Wagner que se dirigiu à capital no sábado (24).
Seu comandante, Viktor Zolotov, é homem de confiança do Kremlin. Ele conversou com repórteres nesta terça (27), após evento no Kremlin no qual o presidente agradeceu a militares, integrantes da Guarda e de forças de segurança pela ação contra o motim. “Vocês defenderam a ordem constitucional, a vida e a liberdade dos cidadãos. Vocês pararam uma guerra civil”, disse Putin.
Zolotov tentou dar uma explicação sobre o fato de as forças do mercenário Ievguêni Prigojin, um antigo aliado próximo de Putin, terem chegado a cerca de 350 km de Moscou com pouca oposição. “Concentramos todas nossas forças precisamente nos arredores de Moscou. Se as espalhássemos, eles simplesmente atravessariam a manteiga com uma faca”, disse.
As imagens disponíveis, contudo, mostravam apenas soldados levemente armados, com metralhadoras, tomando posições nas avenidas do sul de Moscou que seriam a rota de entrada dos invasores. Daí o anúncio dos tanques unidades da guarda foram empregadas em ações sob o comando do Exército na Ucrânia, mas de forma limitada.
Seja como for, Zolotov repetiu o que Putin já dissera em pronunciamento na véspera, que as forças rebeldes não conseguiriam tomar Moscou. Militarmente, é possível que esteja certo, mas a admissão da fragilidade apenas aumenta a pilha de constrangimentos para o presidente no episódio.
O anúncio do reforço ocorre no mesmo dia em que o Ministério da Defesa divulgou que irá ficar com o equipamento mais pesado do Wagner. O grupo sempre teve acesso a armamentos sofisticados para suas operações no exterior, como na África e na Síria, inclusive de origem ocidental. Mas desde que virou umas forças de ponta na Ucrânia, recebeu tanques e blindados antes privativos do Exército.
Segundo o acordo que pôs fim à revolta, que Prigojin disse não ter sido organizada para derrubar Putin, mas sim salvar seu grupo do enquadramento proposto pelo ministro Serguei Choigu (Defesa), os amotinados estão anistiados e podem escolher entre juntar-se ao Exército ou ir a Belarus com o seu comandante.
Um grande campo do Wagner está sendo construído no país do aliado de Putin Aleksandr Lukachenko, que nesta terça disse ter colocado suas forças em alerta durante a rebelião armada. Seu papel como mediador é um dos diversos mistérios que envolvem os acontecimentos: Prigojin poderá operar de lá? Se sim, sob ordens do ditador local?
O destino de Prigojin ainda é incerto, mas o caso criminal contra ele e os subordinados foi encerrado nesta terça. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse que não sabe onde ele está, embora o acordo diga que ele vai para Belarus. Com efeito, um jatinho da Embraer de uma empresa do homem conhecido como “chef de Putin”, pelos serviços alimentícios que prestou ao Kremlin, voou de Rostov-do-Don a Minsk nesta terça.
Como o espaço aéreo na região sul da Rússia está fechado desde a invasão da Ucrânia, em fevereiro do ano passado, é bem provável que Prigojin estivesse no avião. Ele comandou a revolta de Rostov-do-Don, cidade na qual tomou o quartel-general do Comando Militar do Sul, vital para as operação no país vizinho, mas não interrompeu suas ações na guerra.
Peskov também teve de responder a questionamentos de jornalistas russos sobre a autoridade presidencial, claramente desafiada pelo motim, por mais que Prigojin tenha dito que não mirava Putin. Na marcha rumo a Moscou, contudo, ao menos cinco helicópteros e um avião foram derrubados pelo Wagner, e quem fez isso foi anistiado.
Putin inclusive pediu um minuto de silêncio pelos aviadores mortos, em número não divulgado. Já Prigojin pediu desculpas pelos ataques.
Para Peskov, quem vê Putin “abalado” são apenas “pseudo especialistas”. “Os eventos mostraram como a sociedade está consolidada em torno do presidente. Nós não concordamos [que ele foi abalado]. Há muita histeria ultraemotiva entre especialistas, pseudo especialistas, cientistas políticos e pseudo políticos. Não tem nada a ver com a realidade”, afirmou.
Pode ser, mas o próprio Putin tem alimentado a dimensão da crise em suas falas. No sábado (24), enquanto já negociava um acordo com Prigojin, foi à TV acusá-lo de traição e “facada nas costas”, citando as rusgas internas após a derrubada do czar em 1917 que levaram ao golpe bolchevique e à guerra civil, desembocando na criação da União Soviética cinco anos depois.
Já na fala de segunda (26), voltou a falar em traição, ao mesmo tempo em que elogiava integrantes do Wagner como “patriotas”. Nesta terça, citou “guerra civil”, além da já usada “rebelião armada”.
“Essas fissuras [no poder] não vão derrubar Putin agora. Talvez nunca o derrubem. Mas ele entende que elas, e ele, foram expostos. Como sabemos disso? Ele nunca mencionou o nome de Prigojin em seus discursos desde que a ameaça do golpe surgiu. Qual é o outro nome que Putin nunca menciona? O do líder opositor que o ameaçou tanto que acabou na cadeia, Alexei Nalvani”, escreveu no New York Times o analista Alexei Kolesnikov, que trabalha de Moscou para o Centro Carnegie (EUA).
IGOR GIELOW / Folhapress