(FOLHAPRES) – No Dia da Consciência Negra, a ação mais importante no âmbito da música clássica foi promovida pela série Tucca – Música pela Cura, cujo principal objetivo é arrecadar verba para a manutenção de projetos de pesquisa, tratamento e acolhimento a jovens de baixa renda com câncer.
Tendo apenas músicos negros no palco e obras majoritariamente compostas por compositoras e compositores negros, o programa na Sala São Paulo contou com o coletivo D-Composed, de Chicago, e o violonista brasileiro Plínio Fernandes, atualmente radicado em Londres.
O quarteto de cordas do D-Composed tem sonoridade exuberante e seus membros dominam fluentemente uma ampla gama de técnicas, tradicionais e estendidas, clássicas e populares.
Trouxeram a São Paulo obras das compositoras Tomeka Reid e Jessie Montgomery, e do compositor Daniel Bernard Roumian, americanos com produção ampla e variada. Previstas na partitura, as palmas de “Klap Ur Handz”, movimento do “Quarteto nº5” de Roumian, passaram divertidamente -mas sem muita coesão- do palco para a plateia.
Estrela em ascensão do violão internacional, Plínio interpretou magistralmente os “Cinco Prelúdios” de Heitor Villa-Lobos. É no repertório standard que a qualidade de um intérprete mais se revela: por renová-lo, limpá-lo de clichês e maneirismos, captá-lo em profundidade. A versão do jovem brasileiro pode e deve ser tomada como referência.
Violão e quarteto de cordas juntos tocaram o movimento lento do “Quinteto” de Leo Brouwer, compositor afrocubano que, aos 85 anos, é tido por consenso como o mais importante nome vivo da composição para violão.
O ponto alto do espetáculo foi, porém, a estreia mundial de “Saravá – Pontos de Jongo”, para violão e quarteto de cordas, encomenda da Tucca, especial para a ocasião, ao compositor João Luiz Rezende Lopes.
Um dos mais importantes violonistas brasileiros da atualidade, com carreira consolidada, seja como solista ou na música de câmara, professor titular em Nova York, João Luiz tem recebido encomendas como compositor para além do cenário violonístico -vide seu “Concerto para Harpa”-, e trabalhado com solistas e grupos musicais internacionais de grande destaque.
“Eparrei Iansã”, o primeiro movimento, trata o quarteto de cordas em linguagem pós-tonal, o que abre caminho para a majestosa entrada do violão em “Angola”, seção que também marca a chegada de células rítmicas afro-brasileiras desconstruídas -os tambores do jongo dissolvidos no quarteto de cordas.
Em “Caxambu”, o movimento seguinte, emerge um tema modal brasileiro no violão -o canto dos pontos de jongo-, exposto a partir de uma escrita métrica bartokiana. Já “Soturno” é marca da dor máxima da escravização, em tristeza imensa. A partitura extrai um efeito sonoro impressionante ao prescrever que os integrantes do quarteto de cordas cantam linhas vocais lamentosas, em contraponto simultâneo às melodias tocadas.
“Jongado”, executado com virtuose por D-Composed e Plínio Fernandes, parece penetrar no corpo dos jongueiros. Longe dos copy-pastes literais de temas da música popular urbana tradicional, tão comuns na escrita de compositores brasileiros que orbitam entre o popular e o clássico, João Luiz monta um dominó pontilhista do qual emerge, enfim, a tradução humanizada do som do tambor cangoma: “disse levanta povo, cativeiro já acabou”.
Imortalizados por Clementina de Jesus (1901-87), os versos recitados pelo violonista -sem parar de tocar- mostram que a liberdade não vem de fora. É uma conquista do próprio povo oprimido, e a música acaba no momento exato em que poderia, de fato, começar: com festa, palmas, e até com as dores -mas nunca mais com a desrazão.
Obra de força análoga à antológica “Yanomami”, de 1980, de Marlos Nobre, a composição de João Luiz parece propor que toda música, seja erudita ou popular, só possa começar após o grito de “saravá”.
A temporada Tucca 2025 trará, entre outras atrações, o Quarteto Kronos, em julho, o guitarrista Pat Metheny, em setembro, e, em novembro, o Coro de Câmara da Estônia -em programa devotado à obra do compositor Arvo Pärt- e a prestigiadíssima Orquestra de Filadélfia, com seu regente titular, Yanick Nézet-Séguin, para fazer a integral das quatro sinfonias de Brahms.
TUCCA INTERNACIONAL: D-COMPOSED E PLÍNIO FERNANDES
Avaliação Ótimo
Quando 20 de novembro
Onde Sala São Paulo
Redação / Folhapress