SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Às 16h33 do dia 31 de março de 2022, o ofício da renúncia de João Doria (então no PSDB) ao Governo de São Paulo foi protocolado na Assembleia Legislativa, conforme havia sido combinado meses antes para que ele concorresse à Presidência e seu vice, Rodrigo Garcia, assumisse o Palácio dos Bandeirantes.
Para alívio geral dos tucanos, ele não concretizou o que seria seu dia do fico.
Na véspera, dia 30 de março, Doria havia decidido não renunciar. Alvo de críticas no mundo político pela falta de faro e de tato, acabou demovido da ideia na manhã seguinte, após o presidente do PSDB, Bruno Araújo, redigir uma carta que lhe assegurava a candidatura presidencial.
Fiadores da carta, Araújo e o então vice-governador Rodrigo Garcia (PSDB) são hoje apontados como os algozes de uma candidatura natimorta, estrangulada pela alta rejeição ao governador. Nos bastidores, o time de Eduardo Leite (PSDB-RS), derrotado nas prévias tucanas de novembro de 2021, já se preparava para ocupar o vácuo presidencial.
Assim como Quincas Berro d’Água, personagem de Jorge Amado, o político João Doria teve duas “mortes”. Primeiro, quando hesitou em deixar o cargo e acabou pressionado a isso e, depois, quando acabou sacado da corrida presidencial.
A Folha ouviu mais de 20 pessoas a respeito da tensão que angustiou os tucanos por quase 24 horas entre os dias 30 e 31 de março do ano passado.
Foi por volta das 17h30 do dia 30, num despacho registrado na agenda oficial de Doria, que ele comunicou a Rodrigo que não iria mais renunciar. Motivo: não tinha a garantia de que o partido lançaria seu nome para a Presidência e não trocaria o certo pelo duvidoso.
A conversa entre Doria e Rodrigo foi longa, e o vice foi incisivo, mas não chegaram a brigar. Doria não iria concorrer à reeleição e apoiaria a candidatura de Rodrigo, que, sem a visibilidade de comandar o Palácio dos Bandeirantes, já nem topava concorrer.
Do lado de fora, três secretários ansiavam por notícias. Cauê Macris (Casa Civil), Cleber Mata (Comunicação) e Wilson Pedroso (secretário particular) desconfiavam que Doria decidira não renunciar.
Pistas para isso estavam no ar. Apesar de superorganizado, ele não havia planejado com antecedência sua mudança do palácio nem havia se despedido na última reunião do secretariado, na segunda-feira (28), embora tenha chorado com um vídeo sobre feitos da gestão.
A dúvida dos secretários era se, ao permanecer governador, Doria teria coragem de quebrar um acordo político daquela magnitude.
Uma traição assim colocaria fim à perspectiva de futuro para Doria, seja na política ou no Lide, seu grupo empresarial. Nos meses seguintes de governo, ele não poderia contar com sua base na Assembleia, prefeitos e secretários. Seria renegado pelo PSDB e pelos partidos aliados. Sua vida viraria um inferno.
Foi isso que ouviu o irmão do governador, Raul Doria, espécie de ombudsman da gestão. A expectativa era a de que ele convencesse Doria a renunciar.
Naquele dia 30, na romaria de tucanos à casa de Raul, no Jardim Europa, Rodrigo foi o primeiro a chegar logo após a reunião com o governador. Ele queria desabafar –seu sonho de comandar o estado estava prestes a virar pó. Em seguida, foi para seu apartamento, no Itaim Bibi, tomou um remédio e apagou.
Sua esposa, Luciana, foi quem respondeu a alguns aliados desesperados atrás do vice e foi quem o acordou na manhã do dia 31. Wilson, o secretário particular, o aguardava na sala para irem ao encontro de Doria em uma reunião na ala residencial do palácio. Havia esperança de que ele voltasse atrás.
Rodrigo foi um dos poucos que conseguiu dormir. Pela casa de Raul, entre a noite e a madrugada, passaram Wilson, Cauê, Julio Serson (secretário estadual) e Carlão Pignatari (presidente da Assembleia).
Essa turma já havia debatido a reviravolta longamente. Entre eles, o tom era outro. Os mais exaltados eram Carlão e Orlando Morando, prefeito de São Bernardo do Campo. Presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União Brasil) também participou da celeuma.
Foi nesse contexto que surgiu a ameaça de que, se Doria não saísse, “seria saído” –parte dos tucanos nega que tenha se falado em impeachment, enquanto parte conta que havia até prazo para isso: 30 dias.
Aliados do governador descrevem uma noite de pressão e intimidação. Mas ponderam que nada dito no calor do momento seria levado a cabo.
Doria estava a cerca de 700 m da casa do irmão.
Eram 22h50 do dia 30 e o governador se encaminhava para deixar o jantar que o empresário Marcos Arbaitman, da Maringá Turismo, ofereceu para homenageá-lo em sua casa no Jardim Europa. O evento era de apoio também a Rodrigo, mas ele não apareceu.
Doria e alguns mais chegados, como o presidente do PSDB estadual, Marco Vinholi, e o prefeito de Jundiaí, Luiz Fernando Machado (hoje no PL), disfarçaram bem a turbulência. No jantar, a secretária de Desenvolvimento Social, Célia Parnes, chegou a discursar dizendo que Doria não conjugava o verbo “desistir” e que rumores estavam “longe da realidade”.
O próprio Doria falou como candidato por mais de 50 minutos. Como já havia feito em outras ocasiões, repetiu que poderia abrir mão para apoiar outro nome da pretensa terceira via.
Presente no jantar, a reportagem insistiu: “Governador, esta é a última noite em que o senhor dorme governador, é isso?”. Mas Doria não confirmou. “Amanhã, às 16h”, disse apenas, relembrando o horário de uma entrevista marcada com a imprensa.
Entrou no carro e foi para casa, a cinco minutos a pé dali.
Passada a meia-noite, Doria ainda respondeu a um aliado, em meio à chuva de mensagens que recebia, que estava decidido a não renunciar. A Folha confirmou a história logo cedo e publicou a notícia às 6h29: “Doria avisa que vai desistir de tentar Presidência e abre crise no PSDB”.
Às 7h40, a assessoria do governador desmarcou todos os eventos simbólicos que encerrariam sua gestão -no Museu do Ipiranga, em Heliópolis e em um leilão na B3.
Sobrou o 4º Seminário Municipalista, às 16h, no Bandeirantes, que era o pretexto para reunir quase todos os prefeitos do estado na cerimônia em que Doria enfim deixou o cargo. Ao som de “Novo Tempo”, saiu carregado do auditório.
Com um sorriso amarelo, Bruno Araújo participou do evento. Horas antes, na manhã daquela quinta-feira (31), ao ligar o celular, se inteirou do incêndio e começou a elaborar a carta que convenceu Doria a renunciar.
Não porque estivesse disposto a lançar Doria a presidente, mas porque tinha a mesma avaliação dos aliados de Rodrigo: manter o governador no cargo prejudicava o partido na eleição em São Paulo. Foi Doria quem teve a ideia da carta, mas o texto foi combinado por mensagens e ligações entre Rodrigo e Araújo.
“As prévias serão respeitadas pelo partido. O governador tem a legenda para disputar a Presidência da República. E não há nem haverá qualquer contestação à legitimidade da sua candidatura pelo partido”, registra a versão final.
Araújo não queria se comprometer. O primeiro rascunho foi escrito em tucanês, em cima do muro. Rodrigo cobrou um texto mais contundente, o que acabou salvando não a candidatura de Doria, mas a sua própria.
Às 11h35, Araújo enviou o que seria sua última versão antes de entrar num voo para São Paulo. Ainda houve uma última adição: “Não há nem haverá contestação”.
O dia seguinte era Dia da Mentira, e a carta não valia mais nada. Num evento do PSDB organizado por Doria, Araújo voltou a dizer que a candidatura do tucano dependia de um acerto com o MDB, que tinha Simone Tebet a oferecer.
A relação entre eles degringolou rápido e, em 23 de maio, Doria se viu isolado e desistiu da disputa de vez.
Doria teve ascensão e queda rápidas na vida pública, impulsionado pelo antipetismo e pela antipolítica, mas esmagado pela extrema direita e pela polarização. Agora sob os holofotes do Lide, diz que não vai se aventurar na política novamente.
Chegou pregando eficiência, estipulou metas, foi rigoroso com horários, trabalhou de madrugada, se promoveu num sem-número de entrevistas. Teve o trunfo da vacina contra a Covid.
O motivo do isolamento não era uma questão de “calça apertada”, como aliados de Jair Bolsonaro tentaram rotulá-lo, mas de desrespeito às regras não escritas e ao corporativismo da política.
Tentou expulsar Aécio Neves; rompeu com Geraldo Alckmin; comprou briga com Andrea Matarazzo, José Aníbal e Alberto Goldman; deu um cavalo de pau no bolsonarismo; organizou um jantar para tomar o posto de Araújo e hesitou em cumprir o compromisso com Rodrigo.
Sucessivos erros de Doria na sua articulação política minaram o caminho para Brasília, que ele ambicionava desde que se elegeu prefeito, no primeiro turno em 2016.
Seu radar já voltara a falhar quando ele confiou na carta que nasceu desacreditada –Doria cumpriu o acordo, mas o partido, não. O estrago estava feito, o PSDB virou nanico na Câmara e coadjuvante em São Paulo.
CAROLINA LINHARES E JOELMIR TAVARES / Folhapress